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sábado, 30 de agosto de 2008

A Face da Arte Contemporânea

Entre Duchamp, A Favorita e Raphael Guedes Augustaitiz

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)
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De vez em quando passo por São Paulo, que acho a mais brasileira e a mais internacional de todas a cidades e, por isso, a diversidade de suas opções parece não ter fim. Na maioria das vezes vou a trabalho – mesmo que sempre dê para dar umas voltas. Desta vez fui mais para visitar parentes e amigos, pingar um pouco mais na casa de uns do que na casa outros, e menos a trabalho. Aproveitei para transitar um pouco mais por suas esquinas, vias, vales, montes e subsolos. Cheguei dia 11 de julho e, por puro golpe de sorte, pude testemunhar a abertura da exposição que o Museu de Arte Moderna (MAM) dedicou às “obras” de Marcel Duchamp – entitulada "Marcel Duchamp: Uma Obra Que Não É Uma Obra 'De Arte'". A exposição fica no MAM de 15 de julho a 21 de setembro de 2008. Eu não poderia deixar de ver a simulação dos signos – e enigmas! – que este “artista” impôs ao século XX e à arte de uma forma geral, tendo estabelecido os princípios daquilo que temos chamado de “arte contemporânea”. Eu não poderia deixar de me banhar nessas águas – embora tenha percebido que elas já estejam um tanto envelhecidas.

No Museu, depois de pagar o passaporte, tem-se que atravessar um corredor ladeado por um enorme painel branco, com pichações feitas com tinta preta e borra de café; aí vem os guardas engalanados para nos dizer o que pode e o que não pode ali (filmar não pode!). Na exposição pude perceber que tanto havia aqueles esforçados em ver algum valor na “obra” e até pretendiam fazer outros perceberem sua coerência – como o caso de uma moça que explicava a um grupo de jovens que não usavam All Star (lembro agora de um texto que li numa edição da Revista Bravo!, fazendo uma relação entre os públicos jovens que freqüentavam a Bienal, e distinguia os que usavam All Star, jovens de classe média, universitários; e os que usavam tênis “da hora”, garotos da periferia) – então falavam da transformação operada pelo “artista” com seus ready mades, mesmo que algumas pessoas franzissem a testa.
Havia até aqueles com algum princípio de riso não contido, no canto da boca.

Desconfio que a “arte” atual (entre aspas, como consta no título da exposição) não apenas é mais radical do que Duchamp, como também há um desconforto que se insurge ali. As “obras” são cópias (talvez de outras cópias) e nisso não haveria nada de mais, em se tratando de Duchamp, já que foi ele o principal demolidor da relação entre o original e a cópia – coisa que só tinha sentido quando à arte estava consagrada alguma aura. A questão é que aqueles seguranças engalanados dão a entender que ali trata-se não apenas de um relicário, mas de um santuário. Alguma aura é re-investida ali, mesmo que já seja ela convertida em simulacro, pois as consciências presentes pagam pela falsificação com a certeza de se relacionarem com alguma coisa autêntica. É, no mínimo, uma relação movida pelo fetiche.

Ocorre que, justo no dia 11 de julho, dia em que cheguei à cidade, o capítulo de A Favorita, novela das oito da Globo, levou ao ar uma cena em que a personagem Alícia está apresentando sua “obra de arte contemporânea” constituída de uma “instalação” de ovos espalhados no chão, formando uma espécie de tapete, e um ovo grande (do tamanho de um ovo de avestruz) que ela própria segura nas mãos, enquanto recita um texto. É interrompida pela personagem Céu, que perguntando se é aquilo que chamam de “arte contemporânea”, invade a instalação e começa a atirar ovos em Alicia. Curiosamente nesse mesmo dia fazia exatamente um mês do ato de Raphael Guedes Augustaitiz, aluno concluinte da Escola de Belas Artes, que invadiu a escola acompanhado de 40 pessoas encapuzadas que picharam o prédio da referida escola, dizendo ele que o gesto fazia parte do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O jovem aluno de 24 anos não logrou o mesmo sucesso de Duchamp. A arte que ele fez está mais para aquilo que, quando criança nossos pais nos diziam: "cuidado com isso, pra não fazer arte". A arte como acidente, desastre, malogro. Por isso o tratamento recebido pelo jovem aluno está mais para o vexame vivido por Alícia, em A Favorita: foi expulso da Faculdade de Belas Artes de São Paulo e ficou sem o diploma. Fez arte! Foi punido, dizem, por ter pichado o prédio da instituição e – conforme palavras de vários veículos de comunicação – por ter depredado, agredido funcionários e destruído alguns trabalhos expostos nas dependências da Universidade. Fez arte!

Voltei de São Paulo com uma sensação estranha em relação à “arte contemporânea” e ao tratamento que damos a ela. De fato, conheço muitas pessoas que não compreendem os seus axiomas, incluindo alguns que nela se aventuram. As pessoas que não tem formação muito requintada de conceitos acadêmicos certamente a estranham. E não a entendem porque não conseguem enxergar o percurso do deslocamento que transforma peças comuns, de uso cotidiano, em obras de arte: o que diferencia um urinol ou uma roda de bicicleta de Ducham de um urinol ou uma roda de bicicleta qualquer? E há aqueles que, compreendendo os axiomas da “arte contemporânea”, deles discordam, como é o caso de Affonso Romano de Sant´Anna, que escreveu um livro de crônicas e críticas de arte cujo título é Desconstruir Duchamp, e para o qual a “arte contemporânea”, emulada a partir do paradigma de Duchamp, rompe com a aura na obra de arte para fincá-la no terreno do puro conceito. É por isso que Céu, personagem “matuta”, não compreendeu a obra de Alícia.

E a minha sensação estranha vai mais além: enquanto “professores” tentam iniciar alguns jovens que não usam All Star no terreno conceitual da “arte contemporânea”, a mesma academia que “banca” o valor da arte de Duchamp, só vê vandalismo na pichação do aluno. É ai onde a estética de contestação da arte contemporânea passa longe da verdadeira contestação. Estava certo Adorno quando relacionou Ulisses atado ao mastro para ouvir o canto das sereias, à divisão da arte em arte de elite (exuberante, refinada, mas atada) e o que se reservara aos remadores: cera nos ouvidos. Este é o duplo silêncio da arte de elite. Silêncio de si. Silêncio dos que poderiam contestar, pois tem sua contestação sequestrada pela simulação "oficial". Suponho que no ato de Raphael Guedes Augustaitiz haja uma dupla inspiração: por um lado o suposto ambiente “liberal” da Universidade, onde aparentemente tudo pode, especialmente no terreno da “arte contemporânea”; por outro lado, a contestação radical, nutrida noutras redes de sentido que, infelizmente, a Universidade não está pronta para dialogar, pois implicaria em reposicionar seu próprio discurso sobre a arte contemporânea.

Neste caso, recomendo ao aluno ler um livro introdutório sobre arte contemporânea, Arte Contemporânea: uma introdução, de Anne Cauquelin (Martins Fontes), para ele entender que a pergunta “o que é arte?”, só pode ser respondida levando em conta a rede de relações que sustenta a respectiva resposta. As redes que decidem o que é arte formam uma instância muito específica, por isso mesmo uma borra de café espalhada em um painel branco na entrada do MAM, abrindo acesso a uma exposição de Marcel Duchamp, não só pode como conta até com trabalho profissional sofisticado, produção, curadoria, etc. Não é apenas estético: é conceitual. E há uma elite que vai ali para consumir este conceito de pichação, educadamente aprisionada em sua rede e em sua simulação: simulacro de rebeldia e transgressão. Por isso mesmo, o ato real, radical, de pichar as paredes da escola, não pode. A rebeldia, a transgressão, desde Duchamp, não passam de encenação! O que não é encenação, pode ser confundido com terrorismo. Maldição!

ONÇA PINTADA

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)

Havia sempre um ritual no meio do verão. Tudo secava. Os barreiros, os tanques, os açudes e até as cacimbas de bogó. A água ia se exaurindo e a terra se exasperando. As pessoas suavam à noite e sonhavam com um furo se abrindo no meio do açude ou do tanque e a água descendo, se contorcendo em rosca, e sumindo para o centro da terra. E as pessoas sonhavam que corriam até o leito do açude a tempo de ainda ouvirem o barulho da água se indo buraco adentro. E restava apenas aquele buraco no meio do leito vazio, como uma passagem para o outro mundo, enquanto o leito dos barreiros ia estalando, esturricando, se arreganhando em rachaduras que mais parecia uma obra surrealista.

Mas fora os pesadelos da noite, depois que toda água se ia, o dia começava sempre antes da manhã. À luz da Estrela Dalva, todos já estavam a caminho do curral, incluindo a meninada que era acordada com um “olha o sol na bunda!” O sol ainda vinha longe, mas era bom prevenir. Parte do trabalho do dia era soltar os animais dos chiqueiros e currais, cortar alguma rama de juazeiro, caraibeira ou outra qualquer que fosse possível, e conseguir água, levantar vaca caída, cortar palma, preparar ração. As cacimbas precisavam ser limpas diariamente porque a areia dos riachos se movia com o pisar dos bichos, e entupia o poço que fora aberto no dia anterior. Além disso, limpar as cacimbas era como se fosse uma forma de massagear as tetas da terra para que ela liberasse um pouco mais do precioso líquido. Mas o fato é que água ficava muito escassa, e a vida ali girava em torno dela. E se a cacimba servia para o consumo humano e para os animais, outros gastos de água ficavam à espera de alternativas. Por isso mesmo, todos os anos, aí pelo mês de outubro, quando tudo já estava pegando fogo, as catingueiras se retorcendo e entrando em hibernação e as cigarras zumbindo em solos desesperados, as famílias se reuniam, juntavam toda a roupa suja, acumulada durante alguns meses, e iam atrás de outras fontes de água – afinal não se podia poluir as poucas fontes com espumas de sabão. Além do mais, a água salobra das cacimbas cortava quilos de sabão em barra, boa parte dele feita em casa, com gordura pobre de fato de bode e decoada, uma espécie de ácido que se extraia do curtimento dos estrumes.

Um destino seguro para encontrar água era a Serra da Natividade. Ali, do outro lado, o norte, onde se chagava contornando sua cabeceira oeste, havia dois “caldeirões” talhados na pedra do “pé da serra”, obras da natureza que ficavam com água o ano todo, porque não infiltrava, e tudo que dali era subtraído era por obra da evaporação e pelo consumo dos animais silvestres: pebas, tatus, jacus, caititus, veados, onças, gambás, saruês, preás, mocós... Por ali, na gramática dos homens, bastava a todos que fossem chamados apenas de “caça”.

A água dos “caldeirões” não era boa para beber, pois ali se acumulava lodo e outras sujeitas dos usos silvestres, mas era excelente para a roupa suja acumulada, que aguardava uma oportunidade de se refrescar. Ia-se à serra, então, por duas razões: as mulheres iam para lavar as roupas; os homens iam para caçar. E a molecada ia para ajudar aos adultos, especialmente às lavadeiras; mas queriam ir porque também era algum tipo de aventura, uma espécie de lazer.
Por obrigação os meninos tinham que carregar água para as mães, irmãs ou tias lavarem a roupa; ajudavam a colocar a roupa para quarar ou para secar em quaradouros de pedras redondas, todas cuidadosamente arrumadas... No resto do tempo a molecada se ocupava em brechar nesga de calçola das lavadeiras e imaginar situações de caça, cujos experimentos em geral se restringiam a matar caga-cebos, correr atrás de calangos e lagartixas com seus estilingues e inventar pequenas mentiras de caçadores – à sombra das grandes mentiras que os adultos contavam à noite, no acampamento, ao redor da fogueira.

Naquele ano foi quase uma expedição. Cinco famílias se juntaram para ir à Serra. Os meninos disputavam para ver quem iria – já que alguns tinham que ficar zelando da casa e dos animais, em cada sítio. A expedição, em geral, durava dois dias e duas noites. Todos levavam material para montar acampamento: redes, algum pano que servisse para improvisar uma tenda, esteiras, cobertores, blusas – afinal, a noite do sertão é muito fria, mesmo nos meses mais quentes. E iam, claro, as trouxas de roupa e as espingardas e rifles. Os mantimentos iam nos alforjes, boca-pius, colchonis e coronas: feijão, arroz, óleo, sal, pimenta do reino, corante, rapadura, farinha, carne seca, fósforo, candeeiro, vela, alho e fumo – até porque era preciso dar um pouco de fumo à caipora. Além das armas de fogo, cartucho, pólvora, espoleta e bucha, cada homem levava também canivete, faca, e facão. Aqui e ali algum levava até um machado ou um serrote – e aproveitava para, na volta, trazer uma carga de lenha, ou alguma madeira para as cercas.

Naquela expedição iam, além dos adultos, homens e mulheres e algumas mocinhas, apenas dois meninos. Um era um sarará amarelo, cabelo de fogo, rosto sardento, um tanto raquítico para a idade. Tais características lhe rendiam apelidos variados: Vermelhinho, Pinto Calçudo, Pintadinho... Este último venceu a disputa com o irmão para que decidir quem iria, pelo simples fato de ser mais frágil. O cuidado do sitio, enquanto os adultos estavam fora, exigia um pouco mais de habilidade e maturidade. O outro guri que ia na viagem era vizinho e primo do primeiro, e fora criado com xodó de avô, por isso havia se acostumado a mentir para tirar proveito das situações. Quando estava junto era um santo, mas a trinta metros de distância, tinha a mania de despachar um monte de palavrões e xingamentos e sair correndo. Nos próximos encontros voltava a ser um santo, como se nada houvesse acontecido. Enquanto o primeiro era de uma timidez assustadora, dessas de ganhar doce e deixar derreter na mão com vergonha de comê-lo em público, o segundo gostava de uns amostramentos inoportunos e chegava a aprontar poucas e boas, destravancando porteiras e colocando a culpa nos outros, ou botando apelidos nas mães e irmãs dos colegas; gostava de gozar com a cara dos amigos, principalmente do amarelo que agora lhe fazia companhia na viagem.

No primeiro dia, chegaram aos caldeirões perto do pôr-do-sol, e o restinho de dia que ainda havia, serviu apenas para armar acampamento. Cortaram e fincaram varas, estiraram lona, armaram redes, estiraram esteiras e agasalharam as trouxas, sacos e alforjes em seus devidos lugares. E enquanto as mulheres e crianças ficaram recolhidas, os homens trataram de explorar a caatinga, com suas armas e cachorros. Vez ou outra se ouvia um latido dos cachorros, ou algum tiro, e lá pela madrugada eles chegaram carregando algumas caças e muitas estórias de caçador. Os meninos já dormiam.

Dormiram pouco, pois, como disse, o dia começa sempre antes da manhã. Tendo despontada nos céus a Estrela Dalva, os homens já estavam fuçando as trempes improvisadas para acender o fogo. Era apenas nessas ocasiões em que os homens chegavam perto do que se pode chamar de fogão. As mulheres haviam trazido cuscuzeiros e chaleiras e logo se improvisou um café. Os homens estavam com pressa de se embrenharem novamente no mato. As mulheres tinham o dia todo para ensaboarem, baterem, quararem e enxaguarem suas trouxas de roupa, com a assistência das mocinhas e dos dois meninos, que na ausência dos adultos ainda faziam as vezes de guardiões de honra da mulherada.

Mas havia tempinhos de folga, às vezes até forçados, quando os dois meninos aproveitavam para arriscar um distanciamento do acampamento e explorar as suas redondezas. Depois as mulheres ralhavam aos berros e eles voltavam correndo para não piorar a situação. Às vezes inventavam coisas bestas para a distração: correr atrás de calango, apostar quem tinha a melhor mira com a baladeira, arrancar flechas de macambiras, fazer cordinhas com tiras de embira, ou subir no alto das pedras mais próximas para vislumbrar a paisagem. Apostavam que estavam vendo a cidade, lá longe, perto do rio, onde sequer tinham ido nunca, a não ser em imaginação. Então o moleque criado com avô propôs ao amarelo que fossem até o outro caldeirão. Era perto, mas era mais selvagem. Certamente a presença de humanos naquele primeiro poço tinha obrigado os animais silvestres a se servirem apenas daquele outro. Iriam lá, mas sem dizer nada às mulheres. Seria na surdina mesmo; quando elas percebessem eles já estariam de volta. E foram!

Cada um foi com suas alpercatas de borracha de caminhão, deixando rastros de pneu de carro no caminho estreito e empoeirado. As baladeiras nas mãos, os bolsos cheios de pedrinhas escolhidas com astúcia. Iam vacilantes, em silêncio ou cochichando comentários sobre a paisagem. O moleque criado com avô inventou que tinha visto um caçador, escondido numa umburana, e era Tintim, o cabeleireiro do povoado, que deixava toda a meninada com o mesmo topete. Mas o amarelo de cabelo de fogo não viu nada. E o moleque criado com avô saiu inventando um monte de coisas que dizia ver e que o outro não via nunca. Alternavam no percurso: ora um ia adiante, ora o outro ia, alternando a brincadeira de meter medo e oferecer suspense um ao outro. Às vezes um triscava no corpo do outro para ou soltava algum rosnado para testar sua coragem. Mas de fato eram os cabelos de ambos que já se haviam arrepiado!

Iam se aproximando do outro caldeirão, este começava a despontar por trás das folhas e já dava pra ver que ele era menos pedregoso e havia até mais lama em suas bordas. De repente, o moleque criado com avô, que ia à frente, fez volta abruptamente e desembestou numa carreira de volta, gritando “Olha a onça!” O amarelo não pensou nem por um milésimo de segundo, fez carreira também atrás do outro, com os cabelos desaparecidos da cabeça. O outro parou antes de chegar ao primeiro caldeirão, onde as mulheres sequer tinham dado por falta dos dois, e perguntou ofegante: “você viu a onça?”.

Claro que deveria ser mais uma das mentiras do garoto – e talvez ele até esperasse que o outro dissesse que não, para que ele insistisse e tirasse alguma outra gozação. Mas, inesperadamente, o amarelo de cabelo de fogo disse que “vi, sim!”, com o coração palpitando na testa. “Viu?”, reagiu o outro, meio incrédulo, e acrescentou um “viu nada!” Mas o amarelo insistiu no “vi, sim” e ficaram ali naquela peleja ofegante. Então o moleque criado com avô disse que não vira onça nenhuma, que estava era brincando e tinha inventando aquilo para assustar o outro, e que o outro é que estava mentindo. Mas o amarelo veio com um “problema seu, se não viu! Eu vi a onça sim, seu otário!” Então se fez um breve silêncio. O amarelo sabia que não poderia mais recuar. E quem poderia lhe desmentir, se aquelas bordas de poço estavam todas pisoteadas de tudo que é pés de bicho do mato? Certamente haveria ali um rastro de onça.

“Tu viu mesmo? E como era a onça?”, perguntou o moleque criado com avô. “A onça?”, respondeu o outro. “Parecia um gato, mas era grande, assim do tamanho de Leão, o cachorro de papai... Acho que era até maior, a bichona. Tava bebendo água, esticada e torcendo o rabo que nem um gato, lá do lado de lá do poço, do lado que fica pro lado da serra”. “Tá mentindo seu sarará!”, o primeiro insistia, incrédulo. Assumiu novamente que não vira nada, pediu que o outro confessasse que também nada tinha visto, mas ele se mantinha firme. Então combinaram que contariam às mulheres o que ambos tinham visto. Mentira ou verdade, seria de ambos.

A mulherada ficou alvoroçada e deram, por uma boca só, broncas e ordens para que os moleques não se afastassem mais dali. Os homens, que deles só se sabia pelos esparsos barulhos que provocavam na mata, um estridente bater de asas ali, um estampido de tiro acolá, um alarido de latidos, mais ali, o eco de um tropel de bicho correndo. Estavam eles enfiados em suas aventuras de caçadores. Em breve chegariam para o almoço, embora já passasse do pino do meio dia. E foram chegando aos poucos, com suas tralhas e uma ou outra caça pendurada nas costas, entre elas um veado ainda jovem, um jacu e dois mocós. A hora do almoço virou um momento de interrogatório coletivo, com o moleque amarelo no centro do inquérito, já que o outro, criado com avô, tinha se reduzido a um coadjuvante, que apenas confirmava as coisas que lhe perguntassem, por força da determinação da estória que o outro contava.

“Parecia um gato grande, maior que um cachorro e era pintada de preto com branco...” seguia explicando o moleque. “Eita! É bem esta bicha que anda comendo a criação! Logo vi que só podia ser coisa de onça pintada”, os homens viam lógica no que lhes era contado por um dos moleques e confirmado pelo outro. Foram ao outro poço, constataram ali rastros de tudo que é bicho e rastros de onça também. “E pela pegada da bicha, é uma bichona! É maior do que um cachorro e muito!” Mas havia rastros menores, rastros de gatos, rastros já endurecidos e outros um pouco mais frescos. Teimaram sobre isto, pois tal detalhe poderia por em prova a estória do menino. Mas se convenceram. E o menino não vacila: tinha visto uma onça, uma onça pintada!

Na volta da viagem, uns com caças ainda frescas na garupa, outros com carnes retalhadas dentro dos bornais e alforjes, as mulheres com suas trouxas de roupas limpas, muitas estórias das caçadas, mas a única estória que havia se consolidado no grupo todo era a do moleque que havia visto uma onça das raras: uma onça pintada! Ou outro moleque, criado por avô, virara um coadjuvante frouxo, que sequer tinha certeza se tinha visto ou não a onça, mas era obrigado a confirmar para não ficar por baixo. O amarelo de cabelo de fogo havia virado celebridade.

No dia da feira, que era sempre aos domingos, o moleque fora abordado por algumas dezenas de homens, velhos e moços, e teve que repetir a mesma estória várias vezes, sempre com a mesma coerência de detalhes, tantos eram que era até surpreendente que tivesse visto tanto em tão pouco tempo. Mas sempre que via o risco de ser posto em prova, dizia “isto aí não deu pra ver, não”. Havia momentos em que se formavam rodas com vários homens em torno dele, e vários deles esbravejavam, depois de ouvir o relato: “é esta fera que tá acabando meu criatório. Já perdi várias cabeças... Eu sabia que tinha um animal destes por aqui, atacando a criação. Ó aí, a prova tai!”

O menino amarelo de cabelo de fogo ficou conhecido como “o caba que viu a onça pintada”. Muitas vezes teve que confirmar aquela estória e repeti-la. O outro moleque, por várias vezes ainda perguntava: “você viu a onça mesmo?” Mas com o tempo deixou de fazer isto; se contentara em fazer parte dela, sem ser seu protagonista. Quanto ao “caba que viu a onça pintada”, seguiu com aquela estória de onça pintada, uma espécie de gato grande, esticada para beber água no poço do caldeirão e contorcendo o rabo. A estória de uma imagem que se tornara algo tão nítido em sua mente que ele jamais teve a oportunidade de dela duvidar.