Josemar da Silva Martins
Doutor em Educação
Professor da UNEB no DCH III
Fui ver o filme “Ó paí, Ó!” (Monique Gardenberg, Brasil, 2007) já alimentado por alguns comentários que havia ouvido sobre o mesmo, e que o enquadravam como uma obra meramente comercial, uma espécie de longo comercial para vender uma Bahia há muito vampirizada pela indústria do Axé Music, ou uma espécie de palco para desfile gratuito deste filão de arte comercial.
Mas – ainda bem! – me deparei com outra coisa. Ali sempre está presente, por trás (ou ao lado) de uma suposta alegria baiana (ou soteropolitana, afinal, o Brasil continua achando que a Bahia é apenas Salvador) uma insistente sombra, um tipo de luto que não deve ser confundido com mera alegoria cinematográfica.
Na verdade, por trás de toda a ginga, o que há é a sutil denúncia de nossa frágil felicidade! Gente que mora mal, come mal, dorme mal, e sonha mal com uma vida que é mera utopia caolha, no fim do horizonte ondulado do Pelô, sempre esticado e renovado ao término de cada desastre de dia, emulado como forma de paraíso.
Não se trata apenas de uma diversidade para ser festejada. Diversidade há em todo lugar; entre-lugares risonhos-e-tristes, são atributos da vida, não apenas na Bahia. Eu prefiro achar que o filme ajuda a desmascarar a fantasia de paraíso tropical e seus recursos de malandragem, diversos da versão carioca. Malandragem já se iniciando na infância risonha e trágica dos meninos que enganam a mãe, e cometem pequenos e humanizados delitos.
Ali, ainda, é o teatro de nossa santa enganação de todo santo dia! O fetiche em relação ao turista gringo (que pode cagar e mijar onde bem entender, que continuará a ser tratado como Totem); o sonho de uma vidinha medíocre na Europa, dando o rabo e limpando banheiro, para voltar cantando vantagem de vida de princesa; pé-rapado que fala inglês – mesmo que não tenha dinheiro para o acarajé ou o camarote; o comerciante respeitado e moralista que banca o trabalho de extermínio de menores; o policial bem relacionado que faz (com muita eficiência) o trabalho sujo de “limpeza. Os xingamentos como forma de dissimulação, quando não se tem o que dizer (“vá tomar no cú!”), expediente que os taxistas usam a torto e direito.
Claro que a gente ri durante todo o filme e se engasga com o seu final. Há os que, acostumados aos roteiros lineares dos enlatados americanos, dizem: “só não gostei do final!”. Pois o final é quando aquela sombra de luto, que acompanha o filme desde suas primeiras imagens, ganha forma e entala nossa gargalhada!
Não consigo vê-lo sem lembrar que, no Brasil, ficamos inventando formas autênticas, heróicas e nobres, para encobrir o fato de sermos todos filhos da puta! Como disse Contardo Calligaris, essa “ausência de pai”, com a qual até a Antropofagia vira mera forma de dissimulação de nossa origem caótica e sem nobreza, que não consegue disfarçar nem o fato de que foi o bispo (a empresa colonizadora) quem comeu os índios, e não o contrário!
Ele me fez lembrar que o brasileiro vive inventando piadas em que o mais fodido (ele próprio) é quem vence no final (independente de o adversário ser português, japonês ou americano). Vive inventando expressões sem sentido: “Deus é Brasileiro”; “Terra do futebol” – enquanto a qualidade de nossos estádios não sustenta nem a reivindicação para sediar uma Copa do Mundo. E nessa linha tudo acaba sendo transformado em “orgulho nacional”, até a corrupção!
Além dessa forma de enganação, há no filme traços de nossa cordialidade patrimonialista – na forma apresentada por Sérgio Buarque de Hollanda – transformada em regra de convívio ordinário. Ali, não há o que festejar, mas o que refletir – e, talvez, seja este o convite do desfecho do filme! Há algo de curioso nessa nossa alegria da miséria, não porque não teríamos o direito ao riso, mas porque isso disfarça bem essa sombra de luto que acompanha nossa gargalhada. Nem o carnaval de Salvador – essa forma já falida de opressão risonha, como sugere Sérgio Bianchi, em Cronicamente Inviável! – não consegue mais disfarçar sua lógica de apartheid e sua expansão meramente mercantil, que já vampirizou a cidade e sua programação.
Curiosamente eu não achei estereótipos no filme, nem nos sotaques, que me pareceram coerentemente bastante diversos. Apenas uma coisa me soou postiço: a pronúncia do “ó paí, ó”. É como se ele devesse ser pronunciado apenas em momentos estratégicos, para demarcar alguma forma de desastre.
Gostei do filme por ter encontrado nele estas propriedades. Parece que ele me disse, em seu final: “Ta rindo de quê, sarará?” Mas parece que é algo que ele tentava me dizer desde o início, mas eu continuava encantado com a festividade da diversidade alegre e maledicente do Pelô, como se sua mensagem fosse apenas esta!
Salvador que se repense! Eu, por exemplo, não consigo esquecer de que o “ó, paí, ó!”, ou o “colé?” (abreviação para a expressão qual é?), ou ainda o “aonde?”, tomados como formas autênticas de criação lingüística, não conseguem disfarçar nossos índices de analfabetismo e o fato de Salvador ser uma das capitais brasileiras onde mais se usa mal a Língua Portuguesa. Do mesmo modo não consigo esquecer (por mais que o filme me faça rir) que muita gente não fez opção por morar mal, comer mal, dormir mal e sonhar mal. Não se trata de opção de vida, poeticamente pensada. Trata-se de processos de exclusão, dentro dos quais se estruturam formas de vida e comunhão criativas e irônicas– ainda bem!
Sobre os benefícios de nossa desordem de cortiço, apenas os turistas, que moram bem e usufruem dos benefícios que a moderna ordem capitalística proporcionou aos seus países (e, talvez, estejam cansados desta ordem, da pontualidade de seus ônibus e das bumdas mínimas de suas mulheres) é que dela gostam; e vêm nela se divertir (não por muito tempo) e tirar proveito de nossa miséria alegre, como uma espécie de souvenir. E aqui são tratados como Totens. Por tudo isso o filme é alegremente trágico, e tragicamente alegre! E nem isso as releases sobre ele conseguem descrever. Elas sempre param em termos como criatividade, ironia, sensualidade e música. Ó paí, ó! Mas, apesar de suas releases, o filme é bom!
Doutor em Educação
Professor da UNEB no DCH III
Fui ver o filme “Ó paí, Ó!” (Monique Gardenberg, Brasil, 2007) já alimentado por alguns comentários que havia ouvido sobre o mesmo, e que o enquadravam como uma obra meramente comercial, uma espécie de longo comercial para vender uma Bahia há muito vampirizada pela indústria do Axé Music, ou uma espécie de palco para desfile gratuito deste filão de arte comercial.
Mas – ainda bem! – me deparei com outra coisa. Ali sempre está presente, por trás (ou ao lado) de uma suposta alegria baiana (ou soteropolitana, afinal, o Brasil continua achando que a Bahia é apenas Salvador) uma insistente sombra, um tipo de luto que não deve ser confundido com mera alegoria cinematográfica.
Na verdade, por trás de toda a ginga, o que há é a sutil denúncia de nossa frágil felicidade! Gente que mora mal, come mal, dorme mal, e sonha mal com uma vida que é mera utopia caolha, no fim do horizonte ondulado do Pelô, sempre esticado e renovado ao término de cada desastre de dia, emulado como forma de paraíso.
Não se trata apenas de uma diversidade para ser festejada. Diversidade há em todo lugar; entre-lugares risonhos-e-tristes, são atributos da vida, não apenas na Bahia. Eu prefiro achar que o filme ajuda a desmascarar a fantasia de paraíso tropical e seus recursos de malandragem, diversos da versão carioca. Malandragem já se iniciando na infância risonha e trágica dos meninos que enganam a mãe, e cometem pequenos e humanizados delitos.
Ali, ainda, é o teatro de nossa santa enganação de todo santo dia! O fetiche em relação ao turista gringo (que pode cagar e mijar onde bem entender, que continuará a ser tratado como Totem); o sonho de uma vidinha medíocre na Europa, dando o rabo e limpando banheiro, para voltar cantando vantagem de vida de princesa; pé-rapado que fala inglês – mesmo que não tenha dinheiro para o acarajé ou o camarote; o comerciante respeitado e moralista que banca o trabalho de extermínio de menores; o policial bem relacionado que faz (com muita eficiência) o trabalho sujo de “limpeza. Os xingamentos como forma de dissimulação, quando não se tem o que dizer (“vá tomar no cú!”), expediente que os taxistas usam a torto e direito.
Claro que a gente ri durante todo o filme e se engasga com o seu final. Há os que, acostumados aos roteiros lineares dos enlatados americanos, dizem: “só não gostei do final!”. Pois o final é quando aquela sombra de luto, que acompanha o filme desde suas primeiras imagens, ganha forma e entala nossa gargalhada!
Não consigo vê-lo sem lembrar que, no Brasil, ficamos inventando formas autênticas, heróicas e nobres, para encobrir o fato de sermos todos filhos da puta! Como disse Contardo Calligaris, essa “ausência de pai”, com a qual até a Antropofagia vira mera forma de dissimulação de nossa origem caótica e sem nobreza, que não consegue disfarçar nem o fato de que foi o bispo (a empresa colonizadora) quem comeu os índios, e não o contrário!
Ele me fez lembrar que o brasileiro vive inventando piadas em que o mais fodido (ele próprio) é quem vence no final (independente de o adversário ser português, japonês ou americano). Vive inventando expressões sem sentido: “Deus é Brasileiro”; “Terra do futebol” – enquanto a qualidade de nossos estádios não sustenta nem a reivindicação para sediar uma Copa do Mundo. E nessa linha tudo acaba sendo transformado em “orgulho nacional”, até a corrupção!
Além dessa forma de enganação, há no filme traços de nossa cordialidade patrimonialista – na forma apresentada por Sérgio Buarque de Hollanda – transformada em regra de convívio ordinário. Ali, não há o que festejar, mas o que refletir – e, talvez, seja este o convite do desfecho do filme! Há algo de curioso nessa nossa alegria da miséria, não porque não teríamos o direito ao riso, mas porque isso disfarça bem essa sombra de luto que acompanha nossa gargalhada. Nem o carnaval de Salvador – essa forma já falida de opressão risonha, como sugere Sérgio Bianchi, em Cronicamente Inviável! – não consegue mais disfarçar sua lógica de apartheid e sua expansão meramente mercantil, que já vampirizou a cidade e sua programação.
Curiosamente eu não achei estereótipos no filme, nem nos sotaques, que me pareceram coerentemente bastante diversos. Apenas uma coisa me soou postiço: a pronúncia do “ó paí, ó”. É como se ele devesse ser pronunciado apenas em momentos estratégicos, para demarcar alguma forma de desastre.
Gostei do filme por ter encontrado nele estas propriedades. Parece que ele me disse, em seu final: “Ta rindo de quê, sarará?” Mas parece que é algo que ele tentava me dizer desde o início, mas eu continuava encantado com a festividade da diversidade alegre e maledicente do Pelô, como se sua mensagem fosse apenas esta!
Salvador que se repense! Eu, por exemplo, não consigo esquecer de que o “ó, paí, ó!”, ou o “colé?” (abreviação para a expressão qual é?), ou ainda o “aonde?”, tomados como formas autênticas de criação lingüística, não conseguem disfarçar nossos índices de analfabetismo e o fato de Salvador ser uma das capitais brasileiras onde mais se usa mal a Língua Portuguesa. Do mesmo modo não consigo esquecer (por mais que o filme me faça rir) que muita gente não fez opção por morar mal, comer mal, dormir mal e sonhar mal. Não se trata de opção de vida, poeticamente pensada. Trata-se de processos de exclusão, dentro dos quais se estruturam formas de vida e comunhão criativas e irônicas– ainda bem!
Sobre os benefícios de nossa desordem de cortiço, apenas os turistas, que moram bem e usufruem dos benefícios que a moderna ordem capitalística proporcionou aos seus países (e, talvez, estejam cansados desta ordem, da pontualidade de seus ônibus e das bumdas mínimas de suas mulheres) é que dela gostam; e vêm nela se divertir (não por muito tempo) e tirar proveito de nossa miséria alegre, como uma espécie de souvenir. E aqui são tratados como Totens. Por tudo isso o filme é alegremente trágico, e tragicamente alegre! E nem isso as releases sobre ele conseguem descrever. Elas sempre param em termos como criatividade, ironia, sensualidade e música. Ó paí, ó! Mas, apesar de suas releases, o filme é bom!
3 comentários:
Legal esta "crítica" do filme "ó pai ó", já estava com vontade de assistir agora a vontade ficou maior, bela descrição!
Só hoje (14/08/07) tive a oportunidade de assistir "Ó paí ó", não na tela mágica de um cinema, como gostaria, mas na bem menos excitante telinha de meu aparelho de televisão, e graças a um DVD pirata, mas devidamente alugado em uma locadora de Petrolina. Já "instruido" pela crônica lúcida e ácida do Professor Pinzoh, pude sorver prazerosamente cada detalhe e refletir, e refletir-me, em cada pesonagem do filme...adorei...e, olha Professor, me senti orgulhoso de ser brasileiro sim...não pelas mazelas tão festivamente expostas, mas pela capacidade dos nossos artistas (roteiristas, diretores e atores) de discutir nossa realidade, não de forma "didática", mas estética...não vi nada de comercial no filme, com exceção da propaganda explícita dos aviões da GOL, (..até ouvi com mais simpatia os números de "AXE MUSIC".....). Quem tem olhos pra ver, e quem tem ouvidos pra ouvir, viu e ouviu o que queria e o que não queria....adorei !!!
Adoro seu trabalho.
Sou Carla estudante de pedagogia de UNEb - campus VII, meu artigo científico tem como base seu trabalho sobre a "a arte da fuleragem", porém há pouco material disponível em nossa biblioteca, ou nenhum. Pode me ajudar postando por e-mail algum material que possa me ajudar. Vou agardar sua resposta. Beijos. Vai meu e-mail: krlinha_lis@hotmail.com.
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