JOSEMAR DA SILVA MARTINS (PINZOH)
Acabo de ler um artigo intitulado “Toque de recolher, medo e indignação”, do ator baiano Lázaro Ramos, publicado no 1º caderno do Jornal A Tarde, em 17/06/2008. Faz pouco tempo conclui a leitura de “Mundo Perdido”, de Patrícia Melo – mesma autora de “O Matador”, que deu origem ao filme “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (2003). Acabo de chegar de minha cidade natal, Curaçá, BA. Os elementos aqui descritos parecem não ter relação alguma, mas têm! O ponto comum é este estágio civilizatório que logramos atingir, onde figuram, em profundo desequilíbrio, liberdade e segurança. Em Curaçá, por exemplo, fiquei sabendo, entre outras coisas, da morte de um jovem de uma família com as quais tenho próximas relações. Este jovem, depois de morto, foi queimado e enterrado, e tudo indica que tamanha brutalidade não passou de “queima de arquivo”. E o pior de tudo isso é que a população até desconfia (ou sabe) quem pode ter cometido tamanha brutalidade, mas está amedrontada! Acuada! Refém!
Freud, em um pequeno livro cujo título é “O Mal-Estar na Civilização”, trás questões importantes sobre essa relação entre liberdade e segurança – questões estas retomadas por Zygmunt Bauman, em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”. Pois estes dois livros nos ajudam a entender que o “estado de saúde” de uma sociedade diz respeito ao equilíbrio que ela mantém entre liberdade e segurança. Mas atingimos um ponto em que, supostamente, temos muita liberdade, e quase nenhuma segurança. Mas aqui se instala um ponto altamente melindroso, pois já não sabemos o que é a liberdade. Na maioria dos casos, a liberdade é confundida como puro liberalismo (excepcionalmente no mundo dos negócios), ou com aquilo que, na língua do povo, é mera libertinagem (na esfera da moralidade). Num caso ou noutro, trata-se de um tipo de liberação desprovida de parâmetro.
Certamente muito do que nomeamos como liberdade, se enquadra naquilo que Bobbio, em “Igualdade e Liberdade”, chama de liberdade negativa – que, na linguagem política, qualifica a situação na qual um sujeito tem não apenas a liberdade de agir sem ser impedido, mas também a de agir sem ser obrigado e, ainda, a de não ser obrigado a agir. Aqui instala-se o indivíduo com toda a sua absoluta potência, sem parâmetros sociais que qualifiquem e modulem a sua ação ou a sua não-ação. É, sem dúvida, a liberdade do indivíduo, em detrimento da liberdade da coletividade. É a relação muda e surda entre indivíduo e coletividade. Certamente as grandes firmas, têm muito interesse nesse tipo de indivíduo, para transformá-lo em consumidor. E aqui as grandes firmas se isentam de suas responsabilidades e se escondem por trás daquilo que chamam “liberdade de expressão” – sendo este o tipo de liberdade que atualmente mais tem sido vampirizada pelas leis do mercado e do consumo.
Podemos falar do mundo das drogas, podemos discutir o conceito de droga – para incluir nele parte da indústria do consumo legal e da indústria cultural – enfim, podemos falar do sexo dos anjos: mas se não tocarmos neste ponto, não chegaremos a lugar algum. Em Curaçá, enquanto o barulho e a fuleragem enlouquecem a cidade, enquanto tudo vira negócio – e, portanto, enquanto mais dinheiro circula na cidade – os pais já não sabem mais o que fazer com os filhos. Encontrei uma menina de uns doze anos dizendo que estava há dois dias sem dormir só “comendo água”, e para não dormir tomou alguma droga que, segundo ela, era “arrebite”. Quase todas as amigas dela já são mães, antes dos 15. Os filhos? Estes estão sendo cuidados pelos avós. Aliás, os avós, cujas aposentadorias e pensões custeiam boa parte da economia da cidade, são os únicos para os quais a cidade nada oferece, além de barulho e incômodo. É dos salários dos avós, muitas vezes, que os jovens sacam empréstimos bancários para comprar moto ou colocar quilos de som no porta-malas do carro. São os avós que ficam com a conta! E para eles, nada, Necas! Eles não têm voz. Eles não existem! Os governos? Estes estão interessados em votos. Em função disso, enchem a praça de eventos de porcaria, de putaria, de coisa ruim e feia. Nossa crise entre liberdade e segurança também passa por essa vampirização da esfera do cotidiano pelas indústrias do consumo, do voto e da droga.
Pode parecer estranho eu estar dizendo isto, já que pertenço a uma geração que também se drogou, que viveu tardiamente sua fase de “sexo, drogas e rock and roll”. Mas afirmo que nossas transgressões não eram meras perversões. Havia ali um protesto. E contra o que protestam os mercadores da banalidade e da droga de agora! Certamente não inventamos esse estado de perversão! Certamente não quisemos esses festivais de besteirol – nem era isso a contracultura de Woodstock, em 1969. Digo isso antes que apereça um conservador qualquer e aponte o seu dedo facista gritando: “a culpa é de vocês, a geração psicodélica!”. Esta geração gritou contra o fechamento conservador e toda forma de discriminação, principalmente a racial e a sexual. E contra o que gritam os vândalos da fuleragem de agora?
Desta fronteira para a froteira do narcotráfico, da corrupçãoe e da banalidade de todas as formas de violência, há também um ponto comum que é a falência da moral – e olhe que não sou um moralista. Por isto, quero fazer aqui uma relação que me é cara: a moral é o lastro da ética – pelo menos conforme o que indica Adolfo Vásquez, em “Ética” – e, em consequência, penso que toda ética deve se traduzir, em termos práticos, em critérios de moralidade ordinária. Se a moral conservadora e elitista era anti-ética, a ética nem por isso deve pretender o niilismo moral. Pelo contrário, a ética de que precisamos deve nos oferecer capacidade moral suficiente para termos coragem de rechaçar todo tipo de ato estúpido e cruel, bem como todo tipo de liberdade negativa que atenta contra nossa segurança coletiva.
Ocorre que a nossa ética – como sugere Zygmunt Bauman, em "Ética Pós-Moderna" – já é “a la carte” e, portanto, já foi confinada nos confins do individualismo. Mas somos bacanas demais para discutir tais questões. Enquanto isso, temos que admitir o “toque de recolher” determinado pelos canalhas, e medrosamente recolhermo-nos em nossa indignação resignada. Os que têm grana podem dispor de suas fortalezas particulares, condomínios privados, redes de eletrochoque, micro-câmeras de auto-vigília, cabines blindadas, salas vip, etc., enquanto os pobres se contentam com os “toques de recolher”. Mas, deveríamos lembrar aos ricos que parte destes desajustes é fruto dos desajustes que eles também patrocinam, ao estarem interessados apenas em ganhar dinheiro com todas as indústrias do consumo, do voto e da droga, ou simplesmente por lavarem as mãos, julgando estar seguros demais em suas fortalezas particulares. Por quanto tempo?
É deste estado de coisas que estamos reféns!
Acabo de ler um artigo intitulado “Toque de recolher, medo e indignação”, do ator baiano Lázaro Ramos, publicado no 1º caderno do Jornal A Tarde, em 17/06/2008. Faz pouco tempo conclui a leitura de “Mundo Perdido”, de Patrícia Melo – mesma autora de “O Matador”, que deu origem ao filme “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (2003). Acabo de chegar de minha cidade natal, Curaçá, BA. Os elementos aqui descritos parecem não ter relação alguma, mas têm! O ponto comum é este estágio civilizatório que logramos atingir, onde figuram, em profundo desequilíbrio, liberdade e segurança. Em Curaçá, por exemplo, fiquei sabendo, entre outras coisas, da morte de um jovem de uma família com as quais tenho próximas relações. Este jovem, depois de morto, foi queimado e enterrado, e tudo indica que tamanha brutalidade não passou de “queima de arquivo”. E o pior de tudo isso é que a população até desconfia (ou sabe) quem pode ter cometido tamanha brutalidade, mas está amedrontada! Acuada! Refém!
Freud, em um pequeno livro cujo título é “O Mal-Estar na Civilização”, trás questões importantes sobre essa relação entre liberdade e segurança – questões estas retomadas por Zygmunt Bauman, em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”. Pois estes dois livros nos ajudam a entender que o “estado de saúde” de uma sociedade diz respeito ao equilíbrio que ela mantém entre liberdade e segurança. Mas atingimos um ponto em que, supostamente, temos muita liberdade, e quase nenhuma segurança. Mas aqui se instala um ponto altamente melindroso, pois já não sabemos o que é a liberdade. Na maioria dos casos, a liberdade é confundida como puro liberalismo (excepcionalmente no mundo dos negócios), ou com aquilo que, na língua do povo, é mera libertinagem (na esfera da moralidade). Num caso ou noutro, trata-se de um tipo de liberação desprovida de parâmetro.
Certamente muito do que nomeamos como liberdade, se enquadra naquilo que Bobbio, em “Igualdade e Liberdade”, chama de liberdade negativa – que, na linguagem política, qualifica a situação na qual um sujeito tem não apenas a liberdade de agir sem ser impedido, mas também a de agir sem ser obrigado e, ainda, a de não ser obrigado a agir. Aqui instala-se o indivíduo com toda a sua absoluta potência, sem parâmetros sociais que qualifiquem e modulem a sua ação ou a sua não-ação. É, sem dúvida, a liberdade do indivíduo, em detrimento da liberdade da coletividade. É a relação muda e surda entre indivíduo e coletividade. Certamente as grandes firmas, têm muito interesse nesse tipo de indivíduo, para transformá-lo em consumidor. E aqui as grandes firmas se isentam de suas responsabilidades e se escondem por trás daquilo que chamam “liberdade de expressão” – sendo este o tipo de liberdade que atualmente mais tem sido vampirizada pelas leis do mercado e do consumo.
Podemos falar do mundo das drogas, podemos discutir o conceito de droga – para incluir nele parte da indústria do consumo legal e da indústria cultural – enfim, podemos falar do sexo dos anjos: mas se não tocarmos neste ponto, não chegaremos a lugar algum. Em Curaçá, enquanto o barulho e a fuleragem enlouquecem a cidade, enquanto tudo vira negócio – e, portanto, enquanto mais dinheiro circula na cidade – os pais já não sabem mais o que fazer com os filhos. Encontrei uma menina de uns doze anos dizendo que estava há dois dias sem dormir só “comendo água”, e para não dormir tomou alguma droga que, segundo ela, era “arrebite”. Quase todas as amigas dela já são mães, antes dos 15. Os filhos? Estes estão sendo cuidados pelos avós. Aliás, os avós, cujas aposentadorias e pensões custeiam boa parte da economia da cidade, são os únicos para os quais a cidade nada oferece, além de barulho e incômodo. É dos salários dos avós, muitas vezes, que os jovens sacam empréstimos bancários para comprar moto ou colocar quilos de som no porta-malas do carro. São os avós que ficam com a conta! E para eles, nada, Necas! Eles não têm voz. Eles não existem! Os governos? Estes estão interessados em votos. Em função disso, enchem a praça de eventos de porcaria, de putaria, de coisa ruim e feia. Nossa crise entre liberdade e segurança também passa por essa vampirização da esfera do cotidiano pelas indústrias do consumo, do voto e da droga.
Pode parecer estranho eu estar dizendo isto, já que pertenço a uma geração que também se drogou, que viveu tardiamente sua fase de “sexo, drogas e rock and roll”. Mas afirmo que nossas transgressões não eram meras perversões. Havia ali um protesto. E contra o que protestam os mercadores da banalidade e da droga de agora! Certamente não inventamos esse estado de perversão! Certamente não quisemos esses festivais de besteirol – nem era isso a contracultura de Woodstock, em 1969. Digo isso antes que apereça um conservador qualquer e aponte o seu dedo facista gritando: “a culpa é de vocês, a geração psicodélica!”. Esta geração gritou contra o fechamento conservador e toda forma de discriminação, principalmente a racial e a sexual. E contra o que gritam os vândalos da fuleragem de agora?
Desta fronteira para a froteira do narcotráfico, da corrupçãoe e da banalidade de todas as formas de violência, há também um ponto comum que é a falência da moral – e olhe que não sou um moralista. Por isto, quero fazer aqui uma relação que me é cara: a moral é o lastro da ética – pelo menos conforme o que indica Adolfo Vásquez, em “Ética” – e, em consequência, penso que toda ética deve se traduzir, em termos práticos, em critérios de moralidade ordinária. Se a moral conservadora e elitista era anti-ética, a ética nem por isso deve pretender o niilismo moral. Pelo contrário, a ética de que precisamos deve nos oferecer capacidade moral suficiente para termos coragem de rechaçar todo tipo de ato estúpido e cruel, bem como todo tipo de liberdade negativa que atenta contra nossa segurança coletiva.
Ocorre que a nossa ética – como sugere Zygmunt Bauman, em "Ética Pós-Moderna" – já é “a la carte” e, portanto, já foi confinada nos confins do individualismo. Mas somos bacanas demais para discutir tais questões. Enquanto isso, temos que admitir o “toque de recolher” determinado pelos canalhas, e medrosamente recolhermo-nos em nossa indignação resignada. Os que têm grana podem dispor de suas fortalezas particulares, condomínios privados, redes de eletrochoque, micro-câmeras de auto-vigília, cabines blindadas, salas vip, etc., enquanto os pobres se contentam com os “toques de recolher”. Mas, deveríamos lembrar aos ricos que parte destes desajustes é fruto dos desajustes que eles também patrocinam, ao estarem interessados apenas em ganhar dinheiro com todas as indústrias do consumo, do voto e da droga, ou simplesmente por lavarem as mãos, julgando estar seguros demais em suas fortalezas particulares. Por quanto tempo?
É deste estado de coisas que estamos reféns!
UM ACRÉSCIMO POSTERIOR:
Espero que Lázaro Ramos, indignado como parace estar, se disponha a incluir o cenário civilizatório de sua indignação, na série "Ó paí, ó!", que será exibida na Globo, e a tematizar Salvador, uma cidade cruzada de paradoxos. Seria bom que ele lesse minha crítica ao filme "Ó paí, ó!" (O Que Eu Vi em "Ó paí, ó!"), que conta neste blog.
Pinzoh
Nenhum comentário:
Postar um comentário