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sábado, 19 de junho de 2010

Adeus, Saramago!

O escritor português José Saramago morreu na sexta-feira, dia 18 de junho, aos 87 anos. A mim a notícia me fez pensar muitas coisas, entre as quais, a capacidade que as pessoas têm de transformar o mundo. Muitas, evidentemente, nem sabem que a possuem. Outras abdicam de dela fazer uso. Saramago começou por transformar sua própria vida pela literatura e a utilizá-la para pensar o mundo e interrogá-lo. Sua literatura nos desloca e convoca-nos a pensar este deslocamento. Com ela, consigo pensar em que tipo de literatura é merecedora do Prêmio Nobel, mas sobretudo a pensar em como a literatura pode mudar o mundo e o modo de o pensarmos, sem ser piegas; com ela me assusto com as imagens oferecidas a esta problematização profunda. Ensaio sobre a cegueira é um manifesto crítico sobre o estágio em que chegamos, como outros. O conto da ilha desconhecida é uma singular expressão de utopia. Mas há dois outros pequenos livros dele, entre os muitos – e maiores – que já li, aos quais sempre volto, em meu ofício de educador. Trata-se de Objecto Quase, um livro de contos, e de As pequenas memórias, com memórias pessoais.

No primeiro, há contos fantásticos, com mensagens politicamente fortes. Um deles chama-se “Cadeira”. Descreve a queda de uma cadeira, coisa simples, mas ele leva 23 páginas para dar cabo da descrição – já que lhe interessa trazer à cena, sutilmente, essa mania do refestelo no poder, supondo segurança estabilizada, enquanto o próprio poder é corroído por dentro, por baixo, pelos micropoderes... Acho que todo político deveria lê-lo para pensar sobre esta inevitabilidade do desgaste e do desmoronamento!

No segundo, são memórias que se encontram, de algum modo, com as minhas próprias memórias, pela sua origem simples e interiorana, rural até. Há um trecho ao qual sempre volto: a parte onde ele descreve a memória do avô, vindo, encharcado de água, sob a chuva, tangendo porcos. Ele o descreve – e quase nos faz tocá-lo com a mão à sua face talhada a enxó, de tão perto que se torna: “É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pode ser nunca”.

Ao que parece, Saramago não cedeu aos impossíveis de seu tempo e lugar. Nem abandonou esses impossíveis, mas os transformou em matéria-prima de seu questionamento profundo do mundo, através de uma arte literária que manejou como poucos. Isso parece justificar essa fila em seu velório!

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