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domingo, 24 de julho de 2011

LIQUIDAÇÃO DE INVERNO

Aceito a sugestão de Elisabet Goçalves Moreira, em sua "Poesia de Domingo" e posto aqui a sua sugestão de hoje: LIQUIDAÇÃO DE INVERNO de Carlos Drummond de Andrade.

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LIQUIDAÇÃO DE INVERNO


Carlos Drummond de Andrade


Olha o ajuntamento na calçada,
o bolo humano denso, silencioso,
a paralisia coletiva...
Que foi que aconteceu?
Crime, suicídio, bomba, um novo deus?
Calma, não te assustes.
Precisas acostumar-te com a cidade
e seus ritos pendulares.
Não viste nos jornais aquele grito
e nas vitrinas as vermelhas tiras
anunciando em voz e cifra
Liquidação
Liquidação?

Agora vejo que esse grupo
indecifrado logo se esclarece.
Homem nenhum, ou quase. Só mulheres,
pois só mulheres sabem quando é hora
de (formigas) comprar para guardar.

A porta está fechada? Mas no aquário
de lãs tricôs camurças couros
quatro consumidoras são servidas,
outras quatro, cá fora, esperam vez.
Esperar resignado
de quem sabe que tudo anda difícil
e até os ossos do festim ,
têm que ser disputados como pérolas.

Outras quatro mais quatro vão entrando
no longo dia lento, frio.
O casaco de acrílico de 1000
961 por 900
e 84, uma pechincha. A calça jeans
para menina, a camisola, a jardineira,
meu Deus, o casacão, o plush,
tudo ficou barato de repente
ou dá a ilusão de ser barato,
convida, chama, intima:
Me compra rapidinho, enquanto o inverno
faz que vai mas não vai, e está gelado
o corpo, o quarto, o amor e tudo mais.

Liquidação, palavra mágica,
seu fundo de negrume e seu clarão.
Liquida-se um império,
uma política, um chefe, uma doutrina,
e nas vazias prateleiras outras formas
se acumulam, aguardam
o tempo de murchar, o desapreço
do preço baixo, a remarcada
voga da estação, como se tudo
durasse um quarto de ano: juramentos,
códigos, angústias, braceletes,
sandálias, planos...
E dura, e dura mais?

...e seu clarão.
Liquidadas as modas sazonais,
restaura-se a esperança na vitrina.
O jogo do futuro nos cativa.
A primavera, juro, vai trazer
o inolvidável prêmio de existir.
Seremos todos jovens. Ninguém mais
se lançará da ponte, ou traficâncias
fará contra a sorte dos humildes.
Todos serão humildes, na alegria
de um tempo verdejante...

Calma, não sonhes tanto.
Liquidação é apenas
porta deixando passar
compradores de saldos.
Se queres o brinquedo
de jogar com palavras, preferível
esta, que te dou entre dois goles
de papo vespertino: liquidâmbar.
Gostaste? Seu olor resinoso
o nariz te penetra e reconforta
a poluída garganta? Esquece, esquece
as liquidações que não liquidam
a carga de injustiça e desamor
pairante sobre a vida,
seja inverno ou verão, outono ou primavera.

(Carlos Drummond de Andrade (31 de Outubro de 1902 — 17 de Agosto de 1987), in Amar se Aprende Amando, 22ª edição, Editora Record, 1999, pp. 166-168).

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