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sexta-feira, 27 de abril de 2007

EDUCAÇÃO: A CRÔNICA DO PRESENTE

Josemar da Silva Martins
Professor da UNEB no DCH III (Juazeiro, BA)
Doutor em Educação pela FACED/UFBA
Não têm conta entre nós os pedagogos da prosperidade que, apegando-se a certas soluções onde, na melhor das hipóteses, se abrigam verdades parciais, transformam-nas em requisito obrigatório e único de todo o progresso. É bem característico, para citar um exemplo, o que ocorre com a miragem da alfabetização do povo.
(Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil)
A maior parte das análises sobre educação geralmente se prende – e de forma bastante pragmática – à questão escolar. Sobretudo agora, quando um discurso renovado empenha todas as faturas, de todos os problemas sociais, na conta da educação, reduzida à idéia de escola. Isso não é novo: diversas vezes em nossa história, a educação foi tomada como a “alavanca para o progresso” e reduzida à instrução escolar elementar, ao mero alfabetismo.

Esta perspectiva já se anunciou desde a aurora do século XVI, com a Reforma Protestante, quando Lutero e Melanchton defendiam a educação universal e pública, capaz de tornar cada pessoa apta a ler e interpretar por si mesma a Bíblia. Depois, já no séc. XVII, esta perspectiva se deslocou do campo da religiosidade para o terreno volvido pelas idéias iluministas, que ressaltavam a razão como o grande instrumento de apreensão e interpretação do mundo. E a escola passou a ser defendida com caráter leigo e livre, ao encargo do Estado, devendo se tornar um bem de caráter universal, obrigatório e gratuito (Cf. NUNES, 1994: 91-93). Daí em diante o próprio arquétipo da modernidade sustentado pelo Iluminismo, adotou esta idéia de educação reduzida à escola, e suportada em quatro princípios burgueses: a universalidade, a gratuidade, a laicidade e a obrigatoriedade.

Entre nós, desde que a proposta moderna de matriz Iluminista se fez presente, contra um modelo de sociedade tradicional em crise, se discute a importância da educação escolar sustentada naqueles quatro princípios burgueses e a sua vinculação com a idéia de alavanca para o progresso; como elemento modernizador. Desde antigas discussões sobre problemas de integração nacional, de transformação das massas em povo, de conversão dos súditos em cidadãos, de superação de nossas mazelas econômicas ou de enfrentamento do nosso formidável sistema de exclusão social, a educação escolar é erigida como variável modernizadora, o que vai orientar as propostas de universalização da instrução primária na América Latina e no Brasil. É por isso que desde fins do século XIX se dissemina por todo o continente Latino-americano a idéia de que “a educação é a locomotiva do progresso” (SAVIANI, 1984: 10), assim continuando a ser durante todo o século XX, e sobretudo agora, na aurora do século XXI.

Os discursos de agora parecem reinventar entre nós aqueles das primeiras décadas século XX, que vinculavam educação e desenvolvimento e chegavam ao excesso de tratar os “desescolarizados” como doentes. Assim via o médico Miguel Couto:
[ignorância é] não somente uma doença, mas a pior de todas, porque a todas conduz; e quando se instala endemicamente, como na nossa terra, assume proporções de verdadeira calamidade pública. É ela que reduz nosso homem a meio homem, a um quarto de homem, e a nossa população à metade ou quarto da realidade; ela e só ela, é a responsável pelo relativo atraso de nossa Pátria, que não pode sofrer o confronto com as outras (in PAIVA, 1987, p. 28).
Não é à toa que se criou neste mesmo período o Ministério da Educação e Saúde. Efeitos de um exacerbado “entusiasmo pela educação” (Cf. PAIVA, 1987) e de uma visão sanitarista e higienista que via na educação (escolar) um instrumento de “limpeza”, para limpar a pobreza de seus vírus mortais: os vírus da ignorância. De lá até cá essa visão reservou para a educação apenas o ambiente escolar e apenas saiu do campo da medicina ou da higiene sanitarista, para entrar em outro, o da psicologia, como se pode ver no atual predomínio das pedagogias psi.

Mas embora estes discursos tenham sido renovados ultimamente, desde as primeiras décadas do século XX já havia quem deles desconfiasse, como Sérgio Buarque de Holanda, que na década de 1930 já advertia:
Cabe acrescentar que, mesmo independentemente desse ideal de cultura, a simples alfabetização em massa não constitui talvez um benefício sem par. Desacompanhada de outros elementos fundamentais da educação, que a completa, é comparável, em certos casos, a uma arma de fogo posta nas mãos de um cego (HOLANDA, 1995, p. 166).
Estamos de volta a este paradoxo. Por um lado educação tem sido reduzida a escola: escolarização, currículo, prédio escolar, professor, aluno... Não já é momento para pensar a educação em termos mais amplos? Já não é tempo de pensar a conexão entre educação e sociedade pautada em outros elementos?

Nossos discursos insistem em afirmar que estamos formando a cidadania consciente, crítica e participativa através da escola. Mas parece que as personalidades dos alunos, as suas identidades e subjetividades estão menos carregadas destas frases de efeito do que daquilo que circula na rua, na festa, no tape, no outdoor, na TV. Na verdade há um hipertexto social. A própria cidade é esse hipertexto, que vai dotando a educação das novas gerações de um caráter cada vez menos escolar. E junto com este hipertexto social há algo de perigoso que nos assusta cada vez mais, uma espécie de desgoverno com o qual não sabemos lidar; preferimos dar-lhe um outro nome: “barbárie social”.

As escolas se encarcerem ainda mais, suspendam recreios, aumentem suas grades, seus cadeados e também sua guarda. O debate se abre movido a desastres não muito distantes: em Salvador (BA), a morte de duas moças de classe média, em uma escola privada, assassinadas por um jovem colega; em Juazeiro (BA), um menino de 12 anos que invadiu uma escola pública, de um bairro periférico da cidade, e esfaqueou um colega de mais ou menos a mesma idade... E os exemplos vão se somando – sem contar os exemplos a nível nacional.

O debate que se abre culpabiliza mais ainda a escola e acrescenta-lhe novas demandas: formar valores, competências, habilidades e de atitudes; aprender a a apre4nder, a fazer, a ser e a conviver. Ou sugere um abandono do público e o encarceramento em condomínios fechados e instituições religiosas (cada vez mais fundamentalistas e intolerantes), com base na suposição de que tudo que está fora disso é o mau; Acirra-se o apelo moralista-coercitivo, solicitando a ampliação dos aparatos de vigília e punição, o cerceamento das liberdades, o aumento dos dispositivos proibitivos e a ampliação dos aparelhos militares e para-militares. Instala-se o Big Brother, o Grande Irmão que é o Grande Olho. Já foi o olho de Deus na Idade Média. O olho do estado na sociedade moderna. O olho da sociedade em seus múltiplos sistemas de conveniência que definem os códigos de pertencimento e as práticas de habitação. Hoje é tudo isso junto, com o suporte dos novos aparatos tecnológicos de vigília: micro-câmeras por tudo que é lugar. “Sorria, para sua segurança você está sendo filmado”. E o que sabem sobre minha segurança?

Na verdade o que está em jogo é, por um lado, uma falência da escola como dispositivo de governo. Foucault já expôs como as escolas foram produzidas similares às prisões e aos manicômios. Elas nasceram junto com os sistemas de vigília e punição, baseadas em esquemas panópticos (FOUCAULT, 1987). Seus tempos e espaços foram formatados para o disciplinamento e o controle dos corpos e a produção de novas condutas.

As relações de violência, que agem forçando, submetendo, quebrando, destruindo e fechando todas as possibilidades e deixando apenas pólo da passividade, como a experiência da palmatória e do castigo, foram substituídas pelas relações de poder disciplinar em que, ao contrário, o “outro” é reconhecido e mantido como o sujeito da ação, fazendo apenas com que se abram campos de respostas, de reações, de efeitos desejáveis, como funcionam, por exemplo, os dispositivos dos direitos e deveres, as faixas de trânsito na rua ou as listas amarelas dentro dos bancos: para produzir não só uma circularidade, mas um “discurso verdadeiro”, ordenador de práticas; para estabelecer uma governamentalidade (FOUCAULT, 1979). Ocorre que esta tecnologia de governo na escola já faliu há muito tempo. Tudo que se faz agora é tentar recuperá-la, renová-la, fazê-la funcionar novamente. Mas vivemos um tempo de desgovernamentalidade. O tempo do desgoverno. E é isso que nos assusta.

E este desgoverno liga-se ao fato de a escola já não ser mais a referência de formação; ao fato de a sociedade ter entrado em período em que, neste hipertexto contam primordialmente agora a cultura do consumo, a alienação, a erotização, a drogadição e a violência que são distribuídas nos espaços públicos, nos eventos de entretenimento, nas festas de inauguração, nas festividades oficiais, nos programas de TV, na programação das rádios AM e FM, nos barzinhos... Estes ambientes da liberação são ambientes da prática de um liberalismo que é, na verdade, o formato primordial de nossa democracia (a de mercado). E tudo então vira mercadoria. Inclusive a produção das subjetividades que são cada vez mais fabricadas dentro dos modos capitalísticos (GUATTARI & ROLNIK, 1996) de produção material e subjetiva, cujos braços estão estendidos até o campo da cultura, do consumo, da produção dos desejos, da elaboração das identidades e da satisfação dos prazeres.

Este ambiente é o de uma segunda colonização, que passa a dizer respeito à alma, pela distribuição e consumo de novas mercadorias que vendem a varejo os ectoplasmas de humanidade, “os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma” (MORIN, 1997: 14). Produtos que circulam no cinema e na TV, e se desdobram em outras mercadorias de uma extensa “Indústria Cultural” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985), virando brinquedos, discos, festas temáticas em escolas, out-doors, as mais-mais das rádios AM e FM, adereços, cadernos, borrachas, roupas, calçados e tatuagens (não apenas essas que vêm nos chicletes; todas porém, grudam em nossos corpos desejantes e mesmo nos procedimentos institucionais e oficiais). Este é o hipertexto, a exterioridade que dialoga com as subjetividades e as refaz.
É a relação da subjetividade com sua exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, cósmica – que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva. A alteridade tende a perder toda aspereza. O turismo, por exemplo, se resume quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e de comportamento (GUATTARI, 1990, p. 8).

Ambientes e hipertextos que produzem também as erosões no Eros e imensos campos de frustrações que, não raras às vezes, viram armas de guerra. O hipertexto não é somente “uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo” – como quer Pierre LÉVY (1993), ou como quer também Manuel CASTELLS (1999), quando reduz demasiadamente esse hipertexto ao espectro das novas tecnologias da informação e da comunicação. Do ponto de vista da educação em sentido amplo, o hipertexto é a própria realidade social e suas esferas de significação. Mas quem está interessado em incluir isso na trama da educação das novas gerações e nas agendas das políticas educacionais e escolares e não-escolares?

Acho que é por isso que a escola deve ser repensada. Ela ainda é muito importante na preparação das novas gerações perante o saber formal, especialmente para os excluídos. É ainda um passaporte fundamental para qualquer proposta de inclusão social. Mas se por um lado a escola deve mudar para ser melhor, por outro, é urgente pensar que educação não é somente escola. As condutas das novas gerações já estão hipertextualizadas e multirreferencializadas. Liberalizadas, banalizadas, prostituídas...

Enquanto as práticas de governo tentam sua re-instituição na escola pelo uso de novos aparatos tecnológicos, o desgoverno já se instalou em várias esferas do convívio social, ajudado pelas posturas liberais e neo-liberais das políticas oficiais. Hoje vivemos na histerese da política, da sexualidade, da estética... Perdemos os referenciais, os parâmetros; entramos na era da transsexualidade, da transpolítica, da transestética, como nos sugere BAUDRILLARD (1990).... Entramos no momento da "pós-orgia". Pare este autor a orgia foi o momento explosiva modernidade: o da liberação em todos os domínios. E o que foi liberado passou para uma esfera de pura circulação infinita. Tudo liberado aí circulando, formando uma órbita, onde tudo fica fadado à comutação incessante, à indeterminação crescente, ao princípio de incerteza... E a pergunta é: e depois da orgia, o que faremos? Tentamos...

Tentamos ter certezas, para nos mantermos do lado do Bem. Este quer o claro, o explicado, o vigiado e o controlado, enfim a oficialidade branca, e em sua prática maniqueísta tende a criar novas zonas escuras de marginalidade e desgovernamentalidade. Por isso não parará de remessar sujeitos à opção do escuro, do inexplicado, do fugidio e do descontrolado. E é a isso que o Bem chamará de Mal – já que o Bem, que sempre está do lado do poder, se autoriza sempre a nomear, ou melhor, a adjetivar o Outro.

Esses são nossos dilemas. E tudo está aí para ser pensado novamente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal: ensaio sobre fenômenos extremos. Campinas, SP: Papirus, 1990.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). – São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. – São Paulo: Editora Cultrix, 2001.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes 1987.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo – 4ª ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

GUATTARI, Félix. As três ecologias – Campinas, SP: Papirus, 1990.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. – 26a ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. (A primeira edição é de 1936).

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: necrose. 3ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. (O espírito do tempo II)

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. 9ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. (O espírito do tempo I)

MORIN, Edgar. O método iv: as idéias, a sua natureza, vida, habitat e organização. – Portugal: Edições Seuil: Biblioteca Universitária: publicações Europa-América, 1991.

NUNES, Antonieta D’Aguiar. A Tentativa de Universalização do Ensino Básico na Bahia com a Proclamação da República. In: Revista da FACED/Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, no 0 (out. 1994). Salvador: FACED/UFBA, 1994, p 91-105.

PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. – 5ª ed. – São Paulo: Edições Loyola, 1987.

SAVIANI, Dermeval. O lógico e o histórico nas análises de desenvolvimento e educação na América Latina. In: RAMA, German [et. al.]. Desenvolvimento e educação na América Latina – 2ª ed. – São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1984, p. 5-16.

Um comentário:

Anônimo disse...

necessario verificar:)