Josemar da Silva Martins (Pinzoh)
Minha memória encontra apenas pontos borrados, com espaços iluminados aqui e ali, de todo modo descontínuos. Sei apenas que houve um dia, quando estávamos na roça – provavelmente a roçar com foices o muçambê preto que havia virado praga – quando os nossos primos, filhos de tio Ioiô e tia Carminha, Gigi, Dinô, Mazim, exceto Viva e Xanda, que já eram mais crescidos para irem à escola, e, além desses, Jorge, filho de Paulino e Guiomar, mas criado pelo velho Petú, pai de Ioiô e quase meu avô, passavam lá no alto da encosta, indo para a escola. A algazarra era grande, típica de um bando de meninos indo para a escola juntos, quando se aproveita o percurso para fazer estripulias inconfessáveis, principalmente se vai junto alguma menina, e ia, a filha de Tonhazão e outra prima dos primos, sobrinha de tia Carmina, que viera passar uns dias com ela para estudar. Iam para a escola e aquilo me despertava curiosidade; uma curiosidade misturada à vontade de me ver livre daquela foice e daquele muçambê preto, de flor branca e caule grudento, de cheiro forte e infestado de abelhas e besouros.
A palavra escola eu já conhecia e já sabia que a ela ia-se para aprender a ler e a escrever, afinal, naqueles tempos, “escreveu, não leu, o pau comeu”. Não por este mote, mas, pelo puro acontecimento de ir à escola, já aí residia um bocado de fascínio, independente daquela praga de muçambês. Meu pai havia prometido nos colocar na escola. Mas foi naquele contexto de foices, muçambês e besouros que ouvi outra palavra que a mim me apareceu suficientemente luminosa para que dela eu jamais esquecesse: aluno. Meu pai disse distraidamente: “Eita! Os alunos de Baiana vão ali numa zuada!”. Aluno ligava-se, em minha cabeça, à palavra alumínio, que eu conhecia não apenas dos caldeirões, tachos e panelas que havia em casa, mas de uma memória mais reluzente ainda, a das bolas prateadas – dizíamos niqueladas – que encimavam as antenas da boléia do caminhão de Antônio Roquete, que nos aparecia ali todos os anos, agredindo os marmeleiros das estradas estreitas, para garimpar sacas de algodão ou alguma de feijão ou milho que por ventura tivesse sobrado das reservas dedicadas à alimentação da família ou ao plantio no ano seguinte. A palavra aluno, por via de sua conexão com as bolas niqueladas do Caminhão de Antonio Roquete, ainda ligava-se a outra palavra: buzina.
A primeira buzina que ouvi – um tanto assustado e ainda sem saber nomeá-la – não foi nem daquele caminhão de antenas com bolas niqueladas, que com o tempo foi se tornando muito familiar, mas foi de algum carro atolado lá na Lagoa ou na passagem do riacho, perto de Samuel. Quem caísse naquele atoleiro, buzinava para que os homens da redondeza se compadecessem e aparecessem por lá para empurrá-lo e livrá-lo do atoleiro. A meninada corria junto, quase sempre à frente, de pés descalços a bater na bunda, para chegar primeiro. A primeira buzina que ouvi, como uma espécie de apito estranho e potente, que ecoava nas encostas e o nos baixios, era algo que meus ouvidos não tinham ainda experimentado e para o qual eu ainda não tinha uma palavra. Saía, provavelmente, de alguma rural ou jipe, pois lembro apenas que os pára-choques e as maçanetas das portas do tal carro eram todos prateados, niquelados. A palavra buzina, quando enfim a ouvi, se ligava, em minha cabeça, a outra palavra que ouvi de conversas distraídas dos adultos, mas que havia se reforçado no dia em que meu pai chegou-nos com carros de plásticos – dizíamos “de mangaba” – e afirmava que aqueles carros eram “feitos de fábrica”, e junto à palavra fábrica soltou outra, não sei em que contexto: usina.
O meu mundo começava a se povoar de palavras estranhas que me traziam um mundo de todo modo reluzente, como aquelas bolas que encimavam as antenas da boléia do caminhão de Antonio Roquete. Enxada, foice, facão, caldeirão, tacho, frigideira, também reluziam, pois eram de aço ou de alumínio. Mas, aluno, alumínio, buzina, usina eram para mim palavras parentes, e me sugeriam algo muito mais reluzente, fosse pelas suas luminosidades verdadeiras, fosse apenas pela luminosidade que uma palavra empresta à outra quando as colocamos lado a lado. Eu sabia que essas palavras não diziam a mesma coisa, mas elas se aparentavam. Aluno mesmo eu não sabia o que era: sabia apenas que essa palavra me remetia a algumas imagens brilhantes.
Aluno e escola eram, ao seu modo, palavras que me remetiam a um mundo que eu apenas começava a desejar pelo mistério que a ele se associava – e, como sabemos, há sempre algo brilhante no núcleo turvo dos mistérios – e sugeriam que havia mundos diferentes do que eu vivia ali, e que estes mundos se tocavam em suas bordas, sem de todo se misturarem, mas havia alguma passagem de um a outro, talvez através daquele caminhão de boléia, antenas e bolas niqueladas; talvez através daquela rural ou jipe no meio do atoleiro; talvez através da escola e seus alunos – palavra que até então eu não sabia exatamente o que era, mas sabia que era algo que brilhava.
Minha memória encontra apenas pontos borrados, com espaços iluminados aqui e ali, de todo modo descontínuos. Sei apenas que houve um dia, quando estávamos na roça – provavelmente a roçar com foices o muçambê preto que havia virado praga – quando os nossos primos, filhos de tio Ioiô e tia Carminha, Gigi, Dinô, Mazim, exceto Viva e Xanda, que já eram mais crescidos para irem à escola, e, além desses, Jorge, filho de Paulino e Guiomar, mas criado pelo velho Petú, pai de Ioiô e quase meu avô, passavam lá no alto da encosta, indo para a escola. A algazarra era grande, típica de um bando de meninos indo para a escola juntos, quando se aproveita o percurso para fazer estripulias inconfessáveis, principalmente se vai junto alguma menina, e ia, a filha de Tonhazão e outra prima dos primos, sobrinha de tia Carmina, que viera passar uns dias com ela para estudar. Iam para a escola e aquilo me despertava curiosidade; uma curiosidade misturada à vontade de me ver livre daquela foice e daquele muçambê preto, de flor branca e caule grudento, de cheiro forte e infestado de abelhas e besouros.
A palavra escola eu já conhecia e já sabia que a ela ia-se para aprender a ler e a escrever, afinal, naqueles tempos, “escreveu, não leu, o pau comeu”. Não por este mote, mas, pelo puro acontecimento de ir à escola, já aí residia um bocado de fascínio, independente daquela praga de muçambês. Meu pai havia prometido nos colocar na escola. Mas foi naquele contexto de foices, muçambês e besouros que ouvi outra palavra que a mim me apareceu suficientemente luminosa para que dela eu jamais esquecesse: aluno. Meu pai disse distraidamente: “Eita! Os alunos de Baiana vão ali numa zuada!”. Aluno ligava-se, em minha cabeça, à palavra alumínio, que eu conhecia não apenas dos caldeirões, tachos e panelas que havia em casa, mas de uma memória mais reluzente ainda, a das bolas prateadas – dizíamos niqueladas – que encimavam as antenas da boléia do caminhão de Antônio Roquete, que nos aparecia ali todos os anos, agredindo os marmeleiros das estradas estreitas, para garimpar sacas de algodão ou alguma de feijão ou milho que por ventura tivesse sobrado das reservas dedicadas à alimentação da família ou ao plantio no ano seguinte. A palavra aluno, por via de sua conexão com as bolas niqueladas do Caminhão de Antonio Roquete, ainda ligava-se a outra palavra: buzina.
A primeira buzina que ouvi – um tanto assustado e ainda sem saber nomeá-la – não foi nem daquele caminhão de antenas com bolas niqueladas, que com o tempo foi se tornando muito familiar, mas foi de algum carro atolado lá na Lagoa ou na passagem do riacho, perto de Samuel. Quem caísse naquele atoleiro, buzinava para que os homens da redondeza se compadecessem e aparecessem por lá para empurrá-lo e livrá-lo do atoleiro. A meninada corria junto, quase sempre à frente, de pés descalços a bater na bunda, para chegar primeiro. A primeira buzina que ouvi, como uma espécie de apito estranho e potente, que ecoava nas encostas e o nos baixios, era algo que meus ouvidos não tinham ainda experimentado e para o qual eu ainda não tinha uma palavra. Saía, provavelmente, de alguma rural ou jipe, pois lembro apenas que os pára-choques e as maçanetas das portas do tal carro eram todos prateados, niquelados. A palavra buzina, quando enfim a ouvi, se ligava, em minha cabeça, a outra palavra que ouvi de conversas distraídas dos adultos, mas que havia se reforçado no dia em que meu pai chegou-nos com carros de plásticos – dizíamos “de mangaba” – e afirmava que aqueles carros eram “feitos de fábrica”, e junto à palavra fábrica soltou outra, não sei em que contexto: usina.
O meu mundo começava a se povoar de palavras estranhas que me traziam um mundo de todo modo reluzente, como aquelas bolas que encimavam as antenas da boléia do caminhão de Antonio Roquete. Enxada, foice, facão, caldeirão, tacho, frigideira, também reluziam, pois eram de aço ou de alumínio. Mas, aluno, alumínio, buzina, usina eram para mim palavras parentes, e me sugeriam algo muito mais reluzente, fosse pelas suas luminosidades verdadeiras, fosse apenas pela luminosidade que uma palavra empresta à outra quando as colocamos lado a lado. Eu sabia que essas palavras não diziam a mesma coisa, mas elas se aparentavam. Aluno mesmo eu não sabia o que era: sabia apenas que essa palavra me remetia a algumas imagens brilhantes.
Aluno e escola eram, ao seu modo, palavras que me remetiam a um mundo que eu apenas começava a desejar pelo mistério que a ele se associava – e, como sabemos, há sempre algo brilhante no núcleo turvo dos mistérios – e sugeriam que havia mundos diferentes do que eu vivia ali, e que estes mundos se tocavam em suas bordas, sem de todo se misturarem, mas havia alguma passagem de um a outro, talvez através daquele caminhão de boléia, antenas e bolas niqueladas; talvez através daquela rural ou jipe no meio do atoleiro; talvez através da escola e seus alunos – palavra que até então eu não sabia exatamente o que era, mas sabia que era algo que brilhava.
Um comentário:
Meu caro Pinzoh, não tenho muito estas recordações, mas wquando lia os livros do meu irmão e da minha mãe, na infância, eu sentia uma espécie de brilho naquilo e queria fazer aquilo. O video-game, a televisão e outras cositas más fizeram uma espécie de barreira para a minha realização. que voltou quando comecei a trabalhar num escritório de advocacia, com um primo meu. Ali, me deparei com outros livros que ficavam em sua biblioteca, os dele e os da sua sócia. Nossa, aquilo foi o primeiro passo para a entrada no curso de jornalismo. Enfim, tenho aquele desejo do qual a Adelice falou na quarta: Eu também quero ser um gande escritor, nem que seja grande para dez pessoas, mas quer ser. um abraço
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