Josemar da Silva Martins (Pinzoh)
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Poucos dias antes dela chegar por ali, correu o bochicho na redondeza de que viria uma menina morar com “mãe Gripina”. Cogitava-se que era filha de Preta de Espingardinha, fruto de um amor fortuito com algum homem cujo nome poderia ser João da Mata, ou qualquer outro. Pelo visto tal pai, com este ou outro nome, deixou filha e mãe ao relento. Pois então viria a menina, com seus sete anos de idade, morar com Agripina.
Os meninos, que não tardam a viver farejando cheiro de tanga de tudo que é menina, já inflaram o disse-me-disse. Coincidiu com o ano que iríamos para a escola, a de Baiana, tutelada pelo velho pai coronelzinho, de revólver no coldre e tudo. A menina morava com Agripina, que era esposa de um dos filhos do velho e, portanto, ia à escola com os seus agora “irmãos de criação”, netos do velho, sobrinhos da professora. Isso iria dar em confusão, mas por enquanto apenas a menina interessa.
No caminho da escola, onde as estradas se encontram, um pouco antes da casa grande da fazenda do velho coronelzinho, seja porque uns adiantaram o passo, seja porque outros remancharam um pouco, o fato é que os alaridos de todos possibilitaram o encontro. E lá ia ela, toda diferente do todos, calada, linda, com cara redonda e alva como lua cheia.
Meu coração de menino de nove anos já tinha se influído por outras meninas; eu já sabia o que era pelo menos trocar insinuações de ousadia com outras meninas, especialmente no encontro com outros meninos. Lucia, Bela, Alda, Guimar... Todas essas a gente vivia arriscando um lutrimento, se escondendo no mato para velas tomar banho peladas na cacimba. Mas a campeã era Evanilda, menina de corpo bonito, que em minha cabeça estava sempre vestida em um vestido verde cana, curto e com muitos babados. Todos nós tínhamos uma Evanilda particular, quando se tratava de fantasias eróticas. Fora isso, questões de sexualidade eram resolvidas por ali mesmo, entre brincadeiras de “cair no poço” com as primas, ou entre o algodoal, ou na areia do riacho, ou ainda em noite de lua – enquanto os pais debulhavam feijão ou se distraíam com as visitas – quando inventávamos um mundo de pai e mãe, só para experimentar alguma núpcia, atrás do feixe de caibros arrumados em forma de casinha.
Mas agora chegara essa menina para morar na casa de “mãe Gripina”. Linda, branca, cabelos negros, panturrilhas arredondadas e gestos delicados. Quem ousaria dirigir-lhe uma ousadia? Com ela o sentimento era outro. Bastou ela me pedir para fazer-lhe a ponta do lápis, para que eu me apaixonasse perdidamente por ela. Passei a andar com a imagem dela na cabeça, desde o momento em que as estradas se separam e cada um vai para o seu lado na volta da escola. Ao fim das tardes, antes ou depois de gritar as cabras nos pastos, subia na caraibeira mais alta para cantar algumas canções, certo de que o vento, que espalharia o alarido pelos quatro cantos da redondeza, também permitisse a ela ouvir e saber quem cantava. Vez em quando anunciava o nome próprio, para não haver dúvida na audição. Fazia isso até ouvir o berro do meu pai ecoando no baixio: “vem pra casa moleque!... casa moleque! ...moleque! ...leque! ... que!”. Cada fim de tarde eu queria antecipar a manha seguinte para re-encontrá-la lá onde os caminhos se fundem, ou na porta da escola. Então decidi dizer-lhe tudo isso numa carta, primeira, e já de amor.
Meu pai nos escolarizou antes de irmos à escola. Por isso mesmo, naquele primeiro ano de escola eu já me arriscava em escrever uma carta de amor. E escrevi. Derramei meu sentimento todo ali, preto no branco. Mas uma carta jamais é suficiente para caber todo o universo de sutilezas que inventamos em situações sentimentais com esta. De fato eu sonhava primaveras entre as caraibeiras floridas, a acrescentar bordas amarelas ao zigue-zague do riacho esturricado; ou então sonhava noites prateadas, depois das chuvas, entre os muçambês pretos, de caule remelento e flor branca, que faziam a roça ficar infestada de abelhas e besouros. Nas noites de lua cheia, eu e ela, de mãos dadas, corríamos e nos deitávamos naquele mar de flores brancas, entre as abelhas, besouros, vaga-lumes e outros insetos, que doavam alguma trilha sonora à imagem prateada, como uma coisa esponjosa e radiante, na qual afundávamos até a altura dos joelhos. Deitaria ali com ela, lado a lado, de titela virada para a lua, com as abelhas e besouros compondo curiosas melodias. E nem os caules pegajosos dos muçambês, nem o cheiro meloso de suas flores interrompeririam aquela felicidade prateada, minha e dela. Permaneceria ali, imagem congelada, que possa ser revista sempre que quiser, mas que daí não saia, para não corromper-se com outras realidades.
Nesses instantes, sexo era coisa impura demais para se misturar a tal imagem. Era coisa para apontar para outras garotas, com ou sem babados, ou até para alguma cabra velha, ovelha, novilha, jumenta, e outras tantas possibilidades mais ou menos nojentas de prática sexual com animais, coisa que muitos fazem nesses ermos de sertão, mas que pertence o universo das coisas inconfessáveis. Mas com aquela menina nada disso havia; a não ser aquela imagem congelada de um inferno de muçambês floridos feito praga, transformado em paraíso prateado para nós dois.
Por capricho dos destinos minha mãe, que escrevia e não lia, deu com a carta, escrita em mal-traçadas linhas, misturadas ao material da escola. Recorreu a alguém para lê-la, o que se sucedeu de forma mais mal-traçada ainda, mas, suficiente para ela entender do que se tratava e asseverar: “guarde ali na gaveta da máquina que eu vou mostrar pro pai dele”. A coisa ia se complicar. Esperei minha mãe se distrair e entrei na ponta do pé, peguei a carta, levei para o mato e rasguei em pedacinhos miúdos, depois os misturei com as folhas secas de marmeleiros e baraúnas. Mas quem leu a carta para minha mãe andou batendo com a língua nos dentes e no outro dia já se adiantaram os “irmãos de criação” dela, já nos insultos, querendo explicação. O velho coronelzinho já se enchei de gracinhas para perguntar: “já tá mijando pra cima, menino?”. Foi aquele bafafá e eu acabei me acanhando mais com a menina. Passamos a nos falar quase nada, muito raramente ela vinha me pedir que eu fizesse a ponta do seu lápis, e me olhava de raspão, com um quase sorriso pendurado num dos cantos da boca. Mas carta havia estragado tudo, ou quase tudo, principalmente porque não a entreguei, nem pude dizer-lhe como eram bonitas as minhas fantasias.
Minha mãe tinha uma banquinha de doces no mercado novo do povoado, ao lado da banquinha de “mãe Gripina”, que vendia um arroz doce com canela inigualável. Um dia minha mãe me pediu que ficasse na banquinha e, para minha surpresa, lá estava ela, a menina, com um vestido de estampas e laços no cabelo. Passei o dia do lado dela, ela vendendo as coisas da “mãe Gripina”, e eu vendendo as coisas da minha mãe. Raramente, um emprestava algum troco ao outro, e aquilo era pura felicidade. Eu comecei a solicitar à minha mãe que me deixasse ali na baquinha, todos os domingos. Embora não houvesse diálogos, e sempre aparecessem outros meninos insinuando alguma ousadia dissimulada, era eu que passava o dia ao seu lado. E isso era tudo.
Mas veio o dia em que meu pai voltou com a notícia de que iríamos embora. Mandou que juntássemos as cabras, ovelhas, vaquinhas em pele e osso, jumentos, peias e mochilas de dar milho, porcos e cochos, cachorros sem coleira e canários de gaiola, que no dia seguinte partiríamos. E foi o que se sucedeu. À tardinha gritamos os bichos no mato. Eles vieram todos para a malhada. Abrimos a porteira do curral para as vaquinhas, e a porteira do chiqueiro para as cabrinhas; o chiqueiro para os porcos, o cercado da palma para a burra e o jumento. No dia seguinte, cedinho, viramos retirantes.
Muito tempo depois voltei ao mercado daquele povoado e ela estava lá, ao lado da banca de arroz doce de “mãe Gripina”. Mas tinha crescido. Apareceram-lhe seios, bustos, bunda, quadris... Tinha-lhe estufado tudo! Cheirava a sexo. Os meninos olhavam para ela e apalpavam o saco, cuspiam virando a cabeça para o lado e esguichando o cuspe por entre os dentes, como marrões querendo virar pai-de-chiqueiro, lambuzando-se com suas próprias excrescências. Tava na cara que ela agora era a sensação das punhetas da molecada.
Quanto a mim, não era mais ela a menina que deitava comigo naquele tapete prateado de mucambês floridos em noite de lua cheia. Não era mais a menina por quem meu coração acelerava quando vinha pedir-me que fizesse a ponta do seu lápis, quando então eu sentia o cheiro, ouvia a voz, e quase roçava a sua pele. Eu achava que no dia em que isso me acontecesse eu empedrava. E eu desejava isso – que permanecia apenas um grande mistério, um grande delírio. Mas, agora, ela não era mais a pessoa para quem escrevi minha primeira carta de amor. Não era mais!
Poucos dias antes dela chegar por ali, correu o bochicho na redondeza de que viria uma menina morar com “mãe Gripina”. Cogitava-se que era filha de Preta de Espingardinha, fruto de um amor fortuito com algum homem cujo nome poderia ser João da Mata, ou qualquer outro. Pelo visto tal pai, com este ou outro nome, deixou filha e mãe ao relento. Pois então viria a menina, com seus sete anos de idade, morar com Agripina.
Os meninos, que não tardam a viver farejando cheiro de tanga de tudo que é menina, já inflaram o disse-me-disse. Coincidiu com o ano que iríamos para a escola, a de Baiana, tutelada pelo velho pai coronelzinho, de revólver no coldre e tudo. A menina morava com Agripina, que era esposa de um dos filhos do velho e, portanto, ia à escola com os seus agora “irmãos de criação”, netos do velho, sobrinhos da professora. Isso iria dar em confusão, mas por enquanto apenas a menina interessa.
No caminho da escola, onde as estradas se encontram, um pouco antes da casa grande da fazenda do velho coronelzinho, seja porque uns adiantaram o passo, seja porque outros remancharam um pouco, o fato é que os alaridos de todos possibilitaram o encontro. E lá ia ela, toda diferente do todos, calada, linda, com cara redonda e alva como lua cheia.
Meu coração de menino de nove anos já tinha se influído por outras meninas; eu já sabia o que era pelo menos trocar insinuações de ousadia com outras meninas, especialmente no encontro com outros meninos. Lucia, Bela, Alda, Guimar... Todas essas a gente vivia arriscando um lutrimento, se escondendo no mato para velas tomar banho peladas na cacimba. Mas a campeã era Evanilda, menina de corpo bonito, que em minha cabeça estava sempre vestida em um vestido verde cana, curto e com muitos babados. Todos nós tínhamos uma Evanilda particular, quando se tratava de fantasias eróticas. Fora isso, questões de sexualidade eram resolvidas por ali mesmo, entre brincadeiras de “cair no poço” com as primas, ou entre o algodoal, ou na areia do riacho, ou ainda em noite de lua – enquanto os pais debulhavam feijão ou se distraíam com as visitas – quando inventávamos um mundo de pai e mãe, só para experimentar alguma núpcia, atrás do feixe de caibros arrumados em forma de casinha.
Mas agora chegara essa menina para morar na casa de “mãe Gripina”. Linda, branca, cabelos negros, panturrilhas arredondadas e gestos delicados. Quem ousaria dirigir-lhe uma ousadia? Com ela o sentimento era outro. Bastou ela me pedir para fazer-lhe a ponta do lápis, para que eu me apaixonasse perdidamente por ela. Passei a andar com a imagem dela na cabeça, desde o momento em que as estradas se separam e cada um vai para o seu lado na volta da escola. Ao fim das tardes, antes ou depois de gritar as cabras nos pastos, subia na caraibeira mais alta para cantar algumas canções, certo de que o vento, que espalharia o alarido pelos quatro cantos da redondeza, também permitisse a ela ouvir e saber quem cantava. Vez em quando anunciava o nome próprio, para não haver dúvida na audição. Fazia isso até ouvir o berro do meu pai ecoando no baixio: “vem pra casa moleque!... casa moleque! ...moleque! ...leque! ... que!”. Cada fim de tarde eu queria antecipar a manha seguinte para re-encontrá-la lá onde os caminhos se fundem, ou na porta da escola. Então decidi dizer-lhe tudo isso numa carta, primeira, e já de amor.
Meu pai nos escolarizou antes de irmos à escola. Por isso mesmo, naquele primeiro ano de escola eu já me arriscava em escrever uma carta de amor. E escrevi. Derramei meu sentimento todo ali, preto no branco. Mas uma carta jamais é suficiente para caber todo o universo de sutilezas que inventamos em situações sentimentais com esta. De fato eu sonhava primaveras entre as caraibeiras floridas, a acrescentar bordas amarelas ao zigue-zague do riacho esturricado; ou então sonhava noites prateadas, depois das chuvas, entre os muçambês pretos, de caule remelento e flor branca, que faziam a roça ficar infestada de abelhas e besouros. Nas noites de lua cheia, eu e ela, de mãos dadas, corríamos e nos deitávamos naquele mar de flores brancas, entre as abelhas, besouros, vaga-lumes e outros insetos, que doavam alguma trilha sonora à imagem prateada, como uma coisa esponjosa e radiante, na qual afundávamos até a altura dos joelhos. Deitaria ali com ela, lado a lado, de titela virada para a lua, com as abelhas e besouros compondo curiosas melodias. E nem os caules pegajosos dos muçambês, nem o cheiro meloso de suas flores interrompeririam aquela felicidade prateada, minha e dela. Permaneceria ali, imagem congelada, que possa ser revista sempre que quiser, mas que daí não saia, para não corromper-se com outras realidades.
Nesses instantes, sexo era coisa impura demais para se misturar a tal imagem. Era coisa para apontar para outras garotas, com ou sem babados, ou até para alguma cabra velha, ovelha, novilha, jumenta, e outras tantas possibilidades mais ou menos nojentas de prática sexual com animais, coisa que muitos fazem nesses ermos de sertão, mas que pertence o universo das coisas inconfessáveis. Mas com aquela menina nada disso havia; a não ser aquela imagem congelada de um inferno de muçambês floridos feito praga, transformado em paraíso prateado para nós dois.
Por capricho dos destinos minha mãe, que escrevia e não lia, deu com a carta, escrita em mal-traçadas linhas, misturadas ao material da escola. Recorreu a alguém para lê-la, o que se sucedeu de forma mais mal-traçada ainda, mas, suficiente para ela entender do que se tratava e asseverar: “guarde ali na gaveta da máquina que eu vou mostrar pro pai dele”. A coisa ia se complicar. Esperei minha mãe se distrair e entrei na ponta do pé, peguei a carta, levei para o mato e rasguei em pedacinhos miúdos, depois os misturei com as folhas secas de marmeleiros e baraúnas. Mas quem leu a carta para minha mãe andou batendo com a língua nos dentes e no outro dia já se adiantaram os “irmãos de criação” dela, já nos insultos, querendo explicação. O velho coronelzinho já se enchei de gracinhas para perguntar: “já tá mijando pra cima, menino?”. Foi aquele bafafá e eu acabei me acanhando mais com a menina. Passamos a nos falar quase nada, muito raramente ela vinha me pedir que eu fizesse a ponta do seu lápis, e me olhava de raspão, com um quase sorriso pendurado num dos cantos da boca. Mas carta havia estragado tudo, ou quase tudo, principalmente porque não a entreguei, nem pude dizer-lhe como eram bonitas as minhas fantasias.
Minha mãe tinha uma banquinha de doces no mercado novo do povoado, ao lado da banquinha de “mãe Gripina”, que vendia um arroz doce com canela inigualável. Um dia minha mãe me pediu que ficasse na banquinha e, para minha surpresa, lá estava ela, a menina, com um vestido de estampas e laços no cabelo. Passei o dia do lado dela, ela vendendo as coisas da “mãe Gripina”, e eu vendendo as coisas da minha mãe. Raramente, um emprestava algum troco ao outro, e aquilo era pura felicidade. Eu comecei a solicitar à minha mãe que me deixasse ali na baquinha, todos os domingos. Embora não houvesse diálogos, e sempre aparecessem outros meninos insinuando alguma ousadia dissimulada, era eu que passava o dia ao seu lado. E isso era tudo.
Mas veio o dia em que meu pai voltou com a notícia de que iríamos embora. Mandou que juntássemos as cabras, ovelhas, vaquinhas em pele e osso, jumentos, peias e mochilas de dar milho, porcos e cochos, cachorros sem coleira e canários de gaiola, que no dia seguinte partiríamos. E foi o que se sucedeu. À tardinha gritamos os bichos no mato. Eles vieram todos para a malhada. Abrimos a porteira do curral para as vaquinhas, e a porteira do chiqueiro para as cabrinhas; o chiqueiro para os porcos, o cercado da palma para a burra e o jumento. No dia seguinte, cedinho, viramos retirantes.
Muito tempo depois voltei ao mercado daquele povoado e ela estava lá, ao lado da banca de arroz doce de “mãe Gripina”. Mas tinha crescido. Apareceram-lhe seios, bustos, bunda, quadris... Tinha-lhe estufado tudo! Cheirava a sexo. Os meninos olhavam para ela e apalpavam o saco, cuspiam virando a cabeça para o lado e esguichando o cuspe por entre os dentes, como marrões querendo virar pai-de-chiqueiro, lambuzando-se com suas próprias excrescências. Tava na cara que ela agora era a sensação das punhetas da molecada.
Quanto a mim, não era mais ela a menina que deitava comigo naquele tapete prateado de mucambês floridos em noite de lua cheia. Não era mais a menina por quem meu coração acelerava quando vinha pedir-me que fizesse a ponta do seu lápis, quando então eu sentia o cheiro, ouvia a voz, e quase roçava a sua pele. Eu achava que no dia em que isso me acontecesse eu empedrava. E eu desejava isso – que permanecia apenas um grande mistério, um grande delírio. Mas, agora, ela não era mais a pessoa para quem escrevi minha primeira carta de amor. Não era mais!
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