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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O DIA EM QUE A CHUVA PASSOU

(ilustração de Coelhão para material didático de Curaçá. Aqui as cores foram invertidas)

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)

Lembro a data, claro! Pois, nem faz muito tempo. Dia 21 de janeiro. Noite. Ninguém estava esperando. Todas as janelas estavam abertas, para arrefecer os lares, pois haviam sido quentes aquelas últimas horas. As pessoas estavam nas calçadas, nas redes e até havia algumas nos bares, matando a sede que sobrou do carnaval. Mas meio tristes, estas pessoas dos bares. Poucas. Cansadas. Pouco barulho havia nas ruas – pelo menos não aquele barulho que ouvimos todas as noites, ou melhor, todos os dias; aliás, o dia todo. Aquela excitação não se via. Aquela Fuleragem de sempre havia anoitecido de ressaca, porque tinha amanhecido em farra. Sexo, só simulação: anulação do sexo – quando todo mundo imagina o contrário, e embora estivesse muito quente!

Havia, no entanto, outro barulho, exatamente porque havia sido quente este dia. Todo mundo estava reclamando. E abriam as janelas, abusavam dos ventiladores, dos condicionadores de ar, aqueles que os tinham. Aqueles que não os tinham, abriam as janelas, se abanavam, abanavam uns aos outros. Gentileza! A maior das gentilezas seria abanar o outro? É bom! E bom mesmo é ser abanado, embora a gente já tenha se desacostumado disso: ser abanado. Mas, de qualquer forma, havia esse outro barulho das pessoas abanando umas às outras, onde as havia – quanto mais aquelas que não possuíam condicionadores de ar. As que os possuíam tinham que agüentar os seus barulhos.

Outros barulhos, sim, mas, pensando bem, bem menos que nos dias normais. E o dia quente! Pegando fogo! Você saudava uma pessoa e ela logo lhe dizia: “tá quente hoje, heim!?” Outros diziam: “para onde vamos com tanta quentura, heim!?” Então você ficava ouvindo muitos “heins” das pessoas, quando ia cumprimentá-las. E há os que respondem “ôôôôôôô!” e só. É que este “ô!” alongado serve para qualquer coisa. Tanto para afirmações quanto para negações e “quanto mais, principalmente”. Você tanto poderia dizer: “tá quente, viu?” e a pessoa responder: “ôôôôôôô!” Mas se dissesse, ao contrário, que estava frio, o mesmo “ôôôôôô!” poderia arrematar a conversa de forma conclusiva.

O fato é que estava quente e ninguém achava que iria chover, pois outros dias também foram tão quentes quanto, e chuva necas. Porque chuva por aqui “é lá um se acaso”. Muitas vezes chega até a ser “de-an-em-ano”. Então todos ficaram assim um tanto esparramados por aí, à vontade, os homens com as barrigas de fora – e quanto maiores, mais expostas; ficam eles alisando-as como se fossem troféus – e as mulheres abanando as pernas. São os dias em que as mulheres vestem roupas mais leves. Jogam fora os sutiãs e deixam aqueles bicos de peito à mostra. Descuidados bicos. Até os telhados das casas foram também esquecidos, e o vento ou os gatos já haviam esbandalhado as telhas. E quem liga? Não chove mesmo! Alguns desejavam até que chovesse para não ser preciso molhar as plantinhas do jardim.

Mas, de repente, uma nuvem ainda rarefeita, cobriu a lua. E quem ligou! Muita gente nem viu, ocupada que estava com o Big Brother. E começou a haver alguns estrondos, mas pouca gente ouvia, porque o volume da TV estava alto. E ninguém prestou atenção nem na informação meteorológica, e, portanto, não se sabe nem se foi avisado que choveria. Certamente houve alguma incongruência entre o que foi noticiado e o que, de fato, aconteceu. Ultimamente anda havendo esses episódios que o Sistema não consegue resolver completamente. O Sistema certamente não previu aquela chuva. E se não houve esta previsão, significa que ainda há esperança!

Mas os estrondos foram ficando mais nítidos, mais fortes e foram, aos poucos, ultrapassando o som da TV, e quando alguém saiu à janela para apurar o ouvido e ter certeza do que era, o trovão estalou seu estampido bem ali em cima, e o relâmpago crispou o céu, franzindo uma região inteira do espaço celestial. A impressão era que aquele relâmpago teria trincado o céu, mas não chegou a tanto. Foi suficiente, no entanto, para que uma parte das pessoas se dessem conta de que a chuva estava a caminho. Algumas outras andavam pregadas no computador, alimentando vícios de MSN, orkut, etc., quando foram surpreendidas com um rápido apagão, quase imperceptível, que desligou a máquina tão depressa que quando elas cairam em si, a CPU já vinha se reiniciando por conta própria. E começou a chover!

Que beleza a chuva! A gente já nem lembrava como era, tamanho é o nosso descuido, como qualquer um pode ver. Tamanha é a demora dela em retornar. Mesmo que não precise, mesmo que haja água suficiente na torneira, a gente se habiatua a pedir a Deus que a mande. E quando ela chega, é real. É tão real que não há simulação que a possa realizar. Porque podem haver os efeitos especiais todos – até mais reais que o real – mas a composição de luz, som, cheiro, prazer e medo humano, não é possível de reprodução em igual teor. Como se diria no sertão “eu pego é posta”. E o cheiro então, quero ver quem simula. O cheiro de chuva, eu tenho para mim, que só se sente no sertão. Não tenho sentido isso na cidade grande. Talvez porque ali o cheiro é diferente, eu não o reconheça, porque está misturado ao cheiro de borracha, é um cheiro meio queimado. Esse eu já senti. Certamente há um outro cheio de chuva que vem do mar, e aqueles menos apressados que se refestelam nas janelas, redes nos alpendres ou sacadas de toda a costa, podem senti-lo. Mas o cheiro de chuva no sertão chega bem antes com sua singularidade - essa palavra que está na moda.

Cheiro de chuva no sertão é cheiro de terra molhada. É como se a terra tivesse concentrado suas reservas de aromas, emudecidos entre os cacos de tudo que é coisa jogada fora, entulhada e esquecida. A própria terra, esquecida, mal-tratada, pisoteada, abandonada, adormecida... estremece, se excita quando os primeiros pingos tocam seu corpo. E se arreganha! E exala todos os seus aromas de terra fêmea, atiçados pela fêmea chuva. Cheiro de fêmeas! Quase cheiro de cio! E é cio! Algumas seivas esperavam este momento para deslizarem para o centro das genitálias das plantas, e se lambuzarem noutras seivas, e engravidarem seus pares. Ou então, há todo um estoque de fecundações consolidadas, esperando apenas este “faça-se” que a chuva trás. Não demora. As coisas vão passando do estado de não-ser ao ser. Uma passagem à existência: poiésis. Daí a pouco há plantinhas estufando de tudo que é lugar, rompendo o casco duro da terra. A chuva é gozo! Sexo pesado de algumas forças da natureza, que cruzam seus negativos com seus positivos, sem ligarem para a acusação de dicotomia que os pós-modernos podem lhe imputar, e gozam! Gozam com mil trovões, e soltam raios pelas franjas.

Quando a gente era criança, junto com calor a gente sentia o ar mudando, o céu se turvando com nuvens pesadas. A gente sabia que era nuvem carregada. E vinha um vento fazendo esvoaçar as catingueiras, as baraúnas, as caraibeiras, os panos no varal, fazendo escapulir os chapéus de palha, arrebitando as anáguas das moças. Era a hora de deixar a estripulia e correr para casa. Ainda mais quando um trovão supapava tudo e a gente jurava que um raio caíra bem ali do lado, "eu cegue, se não foi". A gente via a manga de chuva se formando, como uma cortina que vinha muito rápido fechando tudo. Sentia o cheiro, ouvia o barulho. Aí chovia pingos grossos, e até chuva de pedra. Tem menino que ficava olhando o céu para ver de onde aqueles pingos descambavam. E depois que passava aquela tromba d’água, a gente até arriscava pular na chuva, no terreiro, tomar banho de bica, correr pelas veredas encharcadas, pisar descalço na lama...

Havia o momento em que a sonoplastia mudava: outro som solicitava que a gente apurasse o ouvido. Era o riacho. Todas as pequenas valas e barrocas, todas as veredas afundadas de tanta gente pisar, iam oferecendo pequenas porções de água para nutrir os córregos. E estes repassavam seus volumes para os córregos maiores, e daí para os riachos menores, que despejavam, por sua vez, no riacho principal, o Riacho do Jaquinicó. A gente ouvia o barulho da cabeceira da água. Uma língua barrenta que ia fazendo chiar a areia do riacho, chiado que ecoava nas encostas, que repercutia nos baixios, e explorava todos os acústicos. A gente corria para saudar a água, saia pinotando na frente da língua d’água, às vezes gritando "nem me pega!".

A chuva trás sempre esses outros barulhos. Sobretudo na cidade, são outros. Os pingos, os respingos. No chão, no telhado esbandalhado, nas ruas asfaltadas, nos tetos dos carros, nos galhos das árvores, nas janelas abertas. Os primeiros pingos são grossos, pesados, mal-educados. Estremecemos com eles e seus estrondos, com os raios; tomamos sustos, sofremos de muitos apertos no coração, e além de tudo isso há as goteiras. Durma com um barulho deste! Esta parte, aliás, não é nada erótica. Não há tesão com uma goteira no meio de dois, ensopando a cama. A não ser que o casal seja meio obcecado por novos experimentos e resolva posicionar-se de modo a aproveitar a goteira para esquentar a relação. Duvido! O fato é que é preciso correr para fechar as janelas, todas que haviam sido abertas para arrefecer os lares, desarmar as redes – nossa! Esquecemos disto! – recolher as cadeiras das calçadas. Conferir as goteiras, as manchas no gesso, algum vinco de água descendo pelo canto... Gente que não acordou com os trovões e relâmpagos, de repente, escorrega um pé da cama e se vê com água pela canela. Toma um susto, pula da cama, arrisca a cair... Mas, o fato é que a casa já está tomada de água. Vazou pela telha quebrada ou esbandalhada pelo cio dos gatos, escorreu do forro de gesso, já encharcado, desceu pela parede. Entrou pela porta da frente, vindo das ruas e bueiros que não lhe deram passagem.

E em pouco tempo as casas estão se enchendo de água, inicialmente a partir do telhado; as ruas ficando alagadas, os bueiros entupindo aos poucos com nosso lixo de cada dia, que nós jogamos por aí, de qualquer jeito, porque somos deseducados demais, e folgados. E depois a água subindo, procurando outros lugares por onde andar, por onde descer, por onde entrar na terra – que é o destino de toda água – mas os bueiros entupidos, as ruas calçadas ou asfaltadas e a água sem ter por onde passar, ou, como se diz por aí, por onde “vazar”; e ela vai se acumulando aqui e ali, e daqui começa a escorrer para ali, e assim vai, uma poça se juntando à outra, a reunião de todas as águas empoçadas, represadas, interditadas, até que começam a entrar nas nossas casas. Sem pedir licença, que a água e a chuva não precisam disso.

O jardim está molhado! Não será preciso ter esse trabalho. Mas é preciso acudir a cachorra parida, agasalhar os filhotes; convencê-la a superar o medo que ela tem de relâmpagos e trovões (os cachorros vão assimilando o medo humano; vão ficando um pouco humanos), e ficar com os filhos dando-lhes calor, carinho e segurança. Mas é preciso dar-lhe um agasalho enxuto, que aqueles panos que estavam lá, já estão encharcados. E é preciso achar um rodo para retirar a água do quarto, ou achar alguns panos com bastante capacidade absorvente, talvez alguma toalha velha que foi rebaixada a pano de chão, para fazer uma barreirinha numa das portas; afastar a cama do lugar e desocupar um balde para aparar a goteira... Puxar, com um rodo largo que felizmente há na casa, a água empoçada e ajudá-la a entrar pelo cano, antes que isso nos ocorra. E haja noite para tanta água!

Quantas alegrias trás a chuva! Quantas memórias, e quantos transtornos ela trás também. E mesmo assim é sempre a ela que esperamos, como bonança divina, como dádiva da natureza, porque nossos textos ainda não a mudaram. Nem sempre sabemos disso, mas é. Ela, a chuva, de alguma forma, acaba sendo um modo ou um elo de comunicação nossa com outra dimensão de nossa existência. Há uma magia na chuva, um vigor, um mistério. Ainda não dominamos modos de detê-la ou de educá-la! A chuva é esta excedência em relação a nossas intenções humanas! E, em circunstâncias particulares como a nossa, onde desacostumamos dela e dos seus afagos e afogamentos, ela acaba sendo o termômetro de nossa desorganização. E ela é tanta que não sabemos nem onde guardamos as velas, caso a luz vá-se embora. E quando isso ocorre, é aquela agonia: gente queimando os dedos, andando pela casa com fósforos acessos, ou isqueiros. Aqueles que se acostumaram com a chama elétrica do fogão agora não podem acendê-la, e nem acham os fósforos e têm que tatear pela casa. Nem as lanternas que viviam pela casa, as crianças brincando e gastando pilha sem necessidade, agora se escafederam; quando as encontramos, depois de fuçar pela casa toda, elas estão com as pilhas estouradas dentro, e há uma sujeira ácida apodrecida tomando conta de tudo e impedindo que novas pilhas, se por acaso houvesse, façam contato com as partes metálicas e permitam acender o foquite.

A chuva no sertão, de tão desacostumados que estamos dela, nos pega definitivamente de calças curtas. A chuva passa para nos dar uma bronca – ouçamos o ronco do trovão, olhemos nos olhos do corisco! Ela nos diz que somos um fracsso em organização, sujamos tudo, deixamos tudo largado, emporcalhado. Depois que a chuva passa há uma imagem diferente das ruas, o lixo está mais à mostra do que nunca, e só então a gente pensa – se é que pensa, pois nosso tempo pensa menos. Às vezes não presta nem atenção na chuva, e ela já foi. As águas já estão longe, sabe-se lá onde. Quem tem sua cisterna, sabe-se lá se pelo menos guardou alguma, para os tempos em que haverá muito menos água no mundo inteiro! É tudo isso! Mas o fato é que a chuva passou – e ninguém garante que ela volte tão cedo!

2 comentários:

Anônimo disse...

Promessa de Vida
Choveu/a caatinga cheiroufeito menina em flor: cheioru,cheirou,cheirou.../ bem-te-vi diz que viu, quando o dia nasceu cardeal fez seu ninho e cantou: cantou,cantou,cantou.
Eu que tanto esperei, to com a alma leve, vendo a chuva cair num sertão sofredor.
caa pingo que cai tras um pouco da prece: novenas , trezenas que o meu povo rezou.
a natureza se veste de tanto verde amor
e orvalhada de sonhos mostra o seu esplendor.

um sorriso se abre
nos lábios do tempo
Promessa de vida do meu criador(alvinho macêdo)
PS: tem um momento do filme Abril Despedaçado que chove. e exatamente na hora da chuva de 21 de janeiro, chovia no filme. Muito bom o texto.

Unknown disse...

gostei esta de parabens