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sábado, 19 de janeiro de 2008

A SURRA IMPROVISADA

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)

Desde o primeiro dia de aula que vinha havendo umas provocações, uns insultos dissimulados ou explícitos. Tudo começou quando os sobrinhos da professora e netos do velho patriarca coronelzinho, dono da fazenda onde ficava a escola, quiseram que eu brigasse com um de seus irmãos menores, para ver quem era mais homem. Isso era uma prova maluca, pois tínhamos apenas algo em torno dos sete ou oito anos de idade. Esses os sobrinhos menores da professora eram do meu tope, como se dizia, e havia uma ética de fazer duelarem apenas aqueles que mantinham condições físicas parecidas. Então, naquele primeiro dia de aula, quando saímos da escola, no meio da baixa que ficava entre a escola e a casa grande da fazenda do velho patriarca coronelzinho, pai da professora e avô dos provocadores, fui interditado:

– Aí! Você não disse que é bom! Quero ver é você ganhar para este daí!

E me empurraram um dos irmãos do meu tamanho. Foi o desfecho das provocações miúdas que duraram toda a manhã daquele primeiro dia de aula. Era como se fosse um ritual de passagem, e eu, sendo o menor daquela turma, teria que dar provas de que poderia continuar vindo à escola sem problemas. Mas meu pai, que era rigoroso, havia avisado: “não quero confusão. Se se envolver em briga, quando chegar em casa vai se haver comigo. Se apanhar, quando chegar em casa, apanha. Se bater, apanha do mesmo jeito”. Não tinha escapatória. A situação era do tipo “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. E bastou essa lembrança das palavras do meu pai, para que eu começasse a corar, a tremer e a prenunciar um choro. Puta constrangimento! Foi o jeito ser sincero:

– Meu pai disse que se eu brigasse, ele me batia quando chegasse em casa.

A situação não melhorou. Os muitos meninos que estavam ali, ansiosos pela “farra”, começaram a gritar em coro: “correu, corrão, com medo do gavião”. E começaram a empurrar uns aos outros para cima de mim. O jeito foi abrir o berreiro. Meu irmão me puxou e fomos embora sob vaias e insultos, cujo mais difícil de ouvir era a adjetivação de “covarde”.

Esta situação foi suficiente para que nos outros dias de aula, os insultos e provocações só fizessem aumentar. Até pirralhos mais amarelos do que eu começaram e me insultar. Um deles, no entanto, era o Edvaldo, filho de Bernardino, do Papagaio. Este era um moleque insolente. Metido a valente! Vivia cumprindo expediente que os frouxos sobrinhos da professora e netos do dono da fazenda, não conseguiam por conta própria. Arreliava. Insultava. Provocava. Com isso ia intimidando, até que se auto-proclamava o vencedor das contendas. Na verdade era uma espécie de capataz daqueles sobrinhos da professora, que se consideravam donos do pedaço só porque a escola ficava em suas terras. E o avô de vez em quando até ia à escola, com revolver no coldre, espiar se alguém estava fazendo alguma estripulia e intimidar, exceto aos seus netos. Esses aí, como tinham essa proteção, se aventuravam em algumas confusões, mas como não tinham coragem de dar cabo de suas arrelias por conta própria, usavam o Edvaldo como escudo.

De vez em quando nosso pai nos incumbia de aproveitarmos a ida à escola para trazermos água da cacimba do velho coronelzinho, que era uma das duas únicas fontes de água, naquele período de seca: a outra era o tanque do Juvino. Mas a cacimba do velho coronelzinho era bem mais perto da escola e da nossa casa. Então a gente levava o jegue com a cangalha e dois barris pendurados nela, um de um lado e outro do outro. Deixávamos o jegue amarrado em alguma sombra rala ao lado da escola, durante toda a manhã. Quando a aula acabava, descíamos até a cacimba, enchíamos os dois barris, feitos de borracha de pneu de caminhão, e pendurávamos na cangalha. Esta etapa era curiosa: eu, bem menor que meu irmão mais velho, ajudava ele a colocar o primeiro barril, de um lado, e ficava escorando este, para que não despencasse com cangalha e tudo, enquanto meu irmão se virava para colocar o outro barril do outro lado. Depois de ambos enganchados nos ganchos da cangalha, os pesos se equilibravam.

Foi quando ainda estávamos pelejando com os barris de água que eles chegaram. Eu brincava com o Raimundo de Cizino, que era um rapaz já, quando eles insultaram:

– Quero ver se você é bom é se enfrentar este daqui.

“Este daqui” era o Edvaldo. E o seboso não esperou nem eu responder, veio vindo em minha direção, aproveitando que eu havia afrouxado no primeiro dia de aula, e foi logo retirando a bolsa com os livros e jogando no chão, para ficar livre para a luta. Estávamos embaixo de uma daquelas enormes caraibeiras que adornam a margem do riacho em toda aquela região. Nesse período de seca, era costume cortar os galhos das caraibeiras para servir como forragem para os animais caprinos e ouvinos. Os galhos eram espalhados embaixo da árvore e eram ali mesmo consumidos pelos animais. Depois de desfolhados restavam apenas varas finas, com tamanhos entre um e dois metros. Naquele momento essas varas estavam também amolecidas pelo sol. “São chicotes perfeitos”, pensei.

E lá vinha o Edvaldo, maior do que eu, com ares de vitória antecipada. Eu, mirrado, começando a tremer, entre o jumento com a cangalha e os barris de água, o meu irmão – que não se envolvia – e as pernas do Raimundo de Cizino que, sendo rapaz feito, achava ético também não se envolver. E lá vinha o Edvaldo, inflando as esporas como galo de briga. Se ele me agarrasse eu estava frito. Bastaria uma rasteira para me por ao chão e zerar minha honra, já abalada desde o primeiro dia de aula. E eu, amarelo, com a boca seca, sem querer rogar ajuda aos maiores que estavam do meu lado, olhei aquelas varas desfolhadas e molengas de caraibeiras: “o jeito é não deixar nem ele chegar perto”.

Dei de garra de uma daquelas varas molengas e parti para cima do Edvaldo, que parece não ter acreditado na minha reação, que era, naquele momento, mero desespero. Ele insinuou que iria pegar também uma daquelas varas, mas aí já era tarde: eu desfiei uma seqüência de lapadas no Edvaldo, nas costas, nas pernas, na cabeça, no corpo todo, e ele começou a se contorcer e desistiu de pegar uma vara. Desistiu também de enfrentar-me. Recucou ainda se contorcendo, com o rosto enrubescido, mas sem chorar. Via-se que estava que era ódio vivo. Não admitia que tivesse sido escorraçado a chicotadas. Mas eu estava ali, teso, com escuma saindo pela boca, com a vara – que a esta altura tinha a ponta um tanto desfiada pela seqüência de pancadas – ainda em punho. Olhava para o Edvaldo, com fogo saindo pelos olhos. Então ele pegou sua bolsa de livros que estava logo ali, ao chão, e se foi para junto dos seus conluiados, que também não acreditaram.

Fez-se silêncio! Em silêncio todos se foram, e nós também. Tocamos o jegue para casa. Neste dia meu irmão e eu também íamos em silêncio, ouvindo apenas os barris de água rangendo nos ganchos e na ossatura da cangalha. Mas meu irmão tinha um ar de orgulho nos olhos. Eu ainda tremia, mas nossos olhos pactuaram que nada contaríamos aos nossos pais. E tínhamos certeza de que do outro lado nenhum deles relataria o ocorrido, afinal, a desonra era do Edvaldo e dos seus senhorinhos.
Dali em diante, fui tranqüilo para a escola e ninguém mais me incomodou.

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