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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ANTONIO NASCIMENTO

Havia poucos momentos em que quase todas as pessoas do lugar se reuniam. Antes do surgimento da Feira, esses momentos eram as novenas e quermesses, festas e adjuntos, sempre fundindo o sagrado e o profano. Ou as taipas de casas, que geralmente antecipavam os casamentos, fossem estes longamente planejados ou rapidamente precipitados, em função de algum ato de desonra. A lei era clara: buliu, tem que casar. Depois da Feira, esta ficou sendo o espaço dos encontros e trocas entre homens e coisas e fluxos. Mas houve uma situação, antes mesmo da Feira, em que todas as pessoas tiveram que convergir para o mesmo lugar, no mesmo dia e horário. Foi no dia da campanha de vacinação. O Governo convocou a todos, adultos, idosos e crianças, para receberem doses de tipos diferentes de vacina. Eu era pequeno, mas lembro! E o que não lembro, invento.
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A população foi convocada a se reunir à margem direita do riacho do Jaquinicó, no local onde passa a estrada que vai de Patamuté a Curaçá, no trecho entre a escola de Baiana e a casa grande de Né Pereira, exatamente ali entre as cacimbas de Antonio Pereira e de Zé de Souza, à sombra das enormes caraibeiras que existem ali. Não lembro a data, o mês, o ano, mas tava quente e tinha muita gente. Todo mundo, com todos os seus, homens, mulheres, meninos, cachorros, velhos, zambetas e zaroios, a pé, a cavalo ou de jumento, com lágrima, suor, berro e bosta de guri e todos os cheiros possíveis, estavam ali, disputando sombra e entortando a fila, que era longa, caótica e zuadenta. Uma das vacinas fazia pequenos furos no braço esquerdo, próximo ao ombro. Sangrava, doía e a meninada abria o berreiro. Parecia um ritual de tortura. E ao mesmo tempo uma festa. Tinha gente vendendo umas garrafinhas de plástico com refrescos coloridos, vindo da rua, que a gente cortava a ponta e se deliciava. Era pra ser gelado, mas na verdade, tanto fazia. O gelo dava dormência na boca e até dava um dor aguda na testa. Chega tinia! Falta de hábito. Tinha gente vendendo bolo, doce. Gente gritando com menino, puxando orelha e dando cascudo em público. Tinha até lambreta. E muita conversa! Aliás, muita zuada.
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Foi a primeira vez eu vi Antonio Nascimento. Vinha num jumento. Inválido. Alguns homens se reuniram para desapeá-lo. Os homens o colocaram numa cadeira, coisa rara por ali. E ele ficou nela, teso, com seu bastão e seus olhos duros. Mexia a boca como se mascasse fumo. Não falava. Era velho. E preto. O mais velho que já vi na vida, mas não o mais preto. Não ia tomar vacina, mas não tinha com quem ficar em casa, aí os parentes o levaram para a campanha de vacinação. Judiação! Uns apostavam que ele já tinha passado dos cem. Nós meninos, chegávamos perto para olhar nos olhos e ver para onde ele olhava tanto, sempre na mesma direção. Será que é cego? A gente ficava na frente dele e ele parece que olhava através da gente, das pessoas e das coisas. Olhava para outro lugar, outro tempo, outro mundo. Ou então tinha paralisado os olhos e não via nada. “Os ói tão impedrado, num tá vendo?” Tinha quem quisesse até levar o dedo na direção dos olhos dele só pra testar. Os adultos ralhavam, a gente dispersava. Os pés eram uns tufos inchados, com rachaduras e unhas quebradas e sujas. O grude das unhas das mãos tinha virado crosta.
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Quando surgiu a Feira, ele também vinha, aos domingos, como um sonâmbulo em cima de um jumento, e alguém a pé, puxando e cuidando para ele não cair. De vez em quando entortava na cela, pendia para um dos lados, mas era sempre teso. Por isso não despencava. Colocavam numa cadeira e ele passava o dia todo ali parado, atraindo moscas e meninos. E a gente ficava pescando histórias sobre o velho. Disseram que ele havia lutado na “guerra do fim do mundo”, a guerra de Canudos. Uma guerra tão horrorosa, sangrenta, que matou todo mundo, e quem não queria morrer tinha que fugir. Teve gente que teve que fazer buraco pra dentro da terra para poder fugir. Entravam nesses buracos e iam sair noutro lugar do mundo. Foi assim com o velho Nascimento. Quando ainda jovem, ele fugiu da guerra, onde lutou ao lado do Conselheiro, por um desses buracos. Buraco que ele cavou com a unhas, feito tatu. Veio sair ali perto. O buraco teve que tapar, para evitar que viessem atrás dele. Deve ser por isso que tem as unhas tão sujas.
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Ficou por ali, fez família, teve filhos, sempre silencioso, misterioso, calado, com uma respiração que às vezes emite uma espécie de rosnado. E mascando! E segurando seu bastão. Demorou a morrer. Naquela época, já nem sabiam mais quantos anos ele tinha. Mais de cem, por certo. Ele mesmo não sabia quando tinha nascido. Documento, não tinha. O povo não sabia se fazia as contas com o nascimento primeiro, de barriga de mulher, de mãos de parteira, ou se só contavam a partir do seu aparecimento, já adulto, vindo do buraco e fugindo da guerra. Na verdade, para as pessoas que o conheciam, ele nasceu mesmo foi de um desses buracos, por onde ele disse que veio, como resíduo real e imaginário da guerra. Ninguém sabia explicar a relação entre o seu nascimento e o sobrenome Nascimento, que carregava. Em seus olhos ainda pareciam crepitar as chamas da guerra. Mas a meninada tinha medo de chegar mais perto desses olhos, pra ver se via mais alguma coisa.

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