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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ERA ASSIM QUE ERA

Na maior parte do tempo o corre-corre começava quando as notícias do dia ainda vinham longe. Papai berrava antes dos animais: “olhe o sol na bunda!” Era hora de pular da rede esfregando os olhos, limpando remelas, espreguiçando o corpo enguiçado de sono. Era preciso relembrar pouco, que o corpo já tava programado, embora, a estas horas, tivesse que pegar no tombo. Caminho do chiqueiro e do curral, um ao lado do outro. Os pequenos tiravam o pouco leite das cabras, que do curral cuidava o pai. Cabritos já crescidos – e magros. Em seguida era abrir a porteira da parte do chiqueiro, estes dormiram ainda afastados das mães e deixar que eles supapassem as pelancas de peitos esvaziados.

O ritual seguinte era soltar a todos e encaminhá-los a algum pé de juá ou caraibeira, que fora desramado para amparar a escassez de verde na alimentação dos animais. Ainda era preciso voltar em casa e moer o milho que fora posto de molho na noite inteira, aparar o leite que gotejava do moinho manual, fincado num dos lados da cozinha, peneirar a massa, separar a fina da grossa, o xerém, e encaminhar a primeira parte para o cuscuz e a segunda para o angu.
Depois disso, ir ao riacho, afastar a areia e os sapos e forçar que a pedra merejasse suas poucas lágrimas, que remediariam a sede de todos. Esperar que a água desse para encher a lata de querosene, de 18 litros, e voltar para casa, equilibrando-a na cabeça, apoiada no rodilha, para abastecer os potes da casa. O resto do dia era conduzindo e socorrendo um animal aqui e outro ali, transpondo de um cerca a outra, por uma vereda ou outra, até que, à tardinha, gritássemos pelo mato, ali por perto, para que todos os animais viessem á malhada. Prender enchiqueirar, lavar os pés, jantar, debulhar alguma espiga, botar milho de molho, pouca conversa, dormir.

Se uma chuva caia, ainda primeira, sem promessa de vir uma segunda, não era o berro do pai antes dos animais – “olhe o céu na bunda!” –, mas era o tinido do atrito da marreta com a lâmina da enxada. E antes disso era o cheiro que entrava pelo corpo e o convidava a espreguiçar antes do berro do pai. Aí tudo mudava! Era outro tempo, que nem lembrança tinha do outro, seco, austero e áspero. Este era outro, úmido e lambuzado. Caminho da roça parecia convite a brincadeira! Demorava pouco para que o mosqueiro anunciasse que havia coalhada e nacos de requeijão pela conzinha.
A terra, mexida, removida, escavada, arada, exalava seu cheiro de cio. As plantinhas concorriam com as minhocas e esbugalhavam o casco duro do chão. A erva nova dava caganeira nos animais. Mas logo, logo haveria pêlo fino nos marrões.

De um tempo a outro o pai era severo. Um olhar de esguio comunicava um enunciado inteiro. Alinhava as covas e ensinava a distância entre uma e outra. Os números de sementes em cada cova também era calculado, já contando com alguma baixa embaixo da terra. Embora o buraco fosse chamado de cova, plantar não era enterrar sementes. Isso tínhamos que aprender cedo.

Nos dias seguintes o berro do pai – “olhe o céu na bunda!” – se confundia com o canto dos passarinhos que teríamos que espantar gritando e batendo latas de uma ponta a outra da roça, para que eles não liquidassem os brotos frágeis dos feijões. Era assim que era! Era assim!

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